Por detrás do nobre povo cantado no hino nacional, há um outro, mais real, mais brutal, não raro desconhecido, frequentemente desprezado pelas gentes urbanas. Não é o povo dos aristocráticos leões rompentes e bravos touros de Camões, antes o das humildes enguias.
Ei-las.
Enterradas no lodo, bem longe do claro céu, mourejam as enguias, sempre desconfiadas das luzes da cidade que fascinam as borboletas ingénuas. Repelentes, de hábitos repugnantes, sobrevivem onde o peixe graúdo, que delas se alimenta, desdenharia viver – mas não se pense que, modestas, discretas, ao menos vivem em paz; não: desde pequeninas que as perseguem impiedosamente. Meixão, chamam-lhes, e vendem-nas a preço de oiro, devoram-nas às dezenas em cada dentada…
As que logram sobreviver, adoptam rudes modos de vida, ou eu ou eles, e todos fechamos os olhos e só nos indignamos quando as suas histórias sobem fétidas do lodo e borbulham chocantes à superfície dos brandos costumes: “Que horror! Más como as cobras!”
Ei-las, evisceradas, palpitantes, contorcendo-se na frigideira, em fuga do azeite fervente das Finanças, ei-las que caem no lume vivo, nos seus cérebros atrofiados por trevas milenares uma única vontade, a de sobreviver, uma única ânsia, a mesma que as leva anualmente a Fátima: o regresso ao Mar dos Sargaços da Redenção deste viver ignóbil…
Como as compreendo, como lhes invejo essa força, essa vontade de lutar desesperadamente, inutilmente, indiferentes à crua realidade, perdida já a esperança do regresso à bonança de um qualquer mar…
Ah, antes o inferno da escolha entre frigideira e lume. Antes escamados, esventrados, que resignados ao canto de sereia dos governantes!
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