Desde a passada quinta-feira, Portugal tem novo governo – um executivo do Partido Socialista sustentado no Parlamento pelos votos do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda.
Embora comum noutros países europeus – onde nem sempre governa o partido mais votado, mas sim aquele (normalmente o segundo) que consegue forjar alianças que lhe garantam maioria parlamentar – a solução é inédita na prática política portuguesa do último meio século.
E só foi possível porque o PS – pela primeira vez desde a Revolução dos Cravos de 1974 – se aproximou dos partidos à sua esquerda; e estes – designadamente os comunistas, seus maiores críticos e rivais nesse quadrante – consentiram num apoio que até agora lhe recusavam.
Trata-se, como aqui assinalámos, de uma importante mudança de paradigma, que faz com que o jogo político passe a ser disputado de forma diferente daqui em diante. Mas isto está longe de ser uma revolução. Significa, pelo contrário, que Portugal passa a reger-se pelo que há de mais normal na vida política europeia!
Ainda assim, a aliança de direita – PSD/CDS – que governou o país nos últimos quatro anos e já dava como certa a sua continuação no poder, ficou, compreensivelmente, em estado de choque quando viu as rédeas do executivo escaparem-lhe das mãos.
Em choque ficou também boa parte do eleitorado de direita e talvez até algum de esquerda, habituados que estavam, há décadas, a que tudo ou quase tudo fosse resolvido ao centro, num eterno jogo pendular, que excluía os extremos do chamado “arco da governação”.
Daí que a temperatura política no país tenha atingido, nas últimas semanas, níveis de aquecimento global, num clima de tensão como já não se via em Portugal há muitos anos.
Tudo ponderado, porém, estamos longe de assistir a uma revolução que ponha em causa os pilares do sistema ou mesmo do regime.
Afinal de contas, o que temos hoje, embora sustentado pelos comunistas, é um governo de minoria exclusivamente formado pelo PS; e que portanto não se afasta – em qualquer dos seus parâmetros, internos ou externos – da moderação e do equilíbrio que são a imagem de marca dos socialistas portugueses, formados, desde a sua origem, em reunião na Alemanha Ocidental um ano antes do 25 de Abril de 74, à imagem e semelhança da mais integrada e pacífica social–democracia europeia.
Possivelmente encorajado pela facção mais à direita do próprio PS, que não concorda com a aproximação do partido à esquerda, o embaixador americano em Lisboa ainda agitou o perigo que um governo sustentado pelos comunistas poderia trazer para a necessária coesão da NATO – a Organização do Tratado do Atlântico Norte, de que Portugal – ainda com Salazar – é membro fundador.
Mas tratou-se manifestamente de falso alarme, pois todos – incluindo os próprios americanos – perceberam muito bem que não havia nem há realmente qualquer perigo, uma vez que a aliança parlamentar das esquerdas com o PS passa por aceitarem que o novo governo de modo nenhum porá em causa os compromissos internacionais do país, seja com a União Europeia, seja com a Aliança Atlântica.
REGRESSO AO CENTRO
O que se passou foi que a coligação de direita PSD/CDS deixou de tal forma isolado o PS ao centro que este na realidade não tinha qualquer outra hipótese de voltar a governar se não se aliasse com os partidos à sua esquerda. A dialética tem destas coisas…
Por outro lado, norteados por uma versão extrema do neoliberalismo, os últimos quatro anos de governação da direita foram de tal forma devastadores em termos sociais – cortes de salários e pensões de reforma, enorme aumento de impostos, desvalorização geral do factor trabalho, aumento exponencial do desemprego e da emigração – que a esquerda à esquerda do PS certamente entendeu que, para poder recuperar algum terreno, teria que abdicar das suas posições mais radicais e consentir no que até agora considerava anátema – aliar-se ao PS, consentir até em apoiar um governo exclusivamente socialista, desde que este se comprometesse a reverter algumas das situações mais gritantes.
Por mais estranha que a solução encontrada pareça, é aí que estamos, nem mais, nem menos – com um governo PS em tudo e por tudo moderado, que se propõe simplesmente reverter algumas das situações socialmente mais gravosas das políticas de direita aplicadas nos últimos quatro anos.
Ou seja, Portugal virou à esquerda para poder regressar ao centro.
POR QUANTO TEMPO?
Mas esta moderação não é suficiente para garantir estabilidade ao novo executivo.
Os partidos de direita estão longe de ter encaixado a viragem, questionam a legitimidade da solução encontrada e advertiram já o novo primeiro ministro, António Costa, de que não poderá contar com eles em qualquer situação de crise.
Quando precisar de nós – avisou o chefe do governo cessante, Passos Coelho, naquilo que soou como verdadeira declaração de guerra, “peça desculpa ao país e demita-se”.
Nos meios políticos da direita não se dá ao novo executivo mais do que um ano, a ano e meio de sobrevivência, no máximo, contando para isso, que as divergências de fundo entre o PS e os seus novos aliados reapareçam e acabem por levar ao desentendimento nalgum momento chave – seja aquando da aprovação do orçamento de Estado, seja quando tiverem que disputar votos nas próximas eleições locais ou apresentar mais planos económicos restritivos em Bruxelas para que o país possa cumprir os limites do défice orçamental.
O próprio Presidente da República, em mais uma declaração polémica, e embora esteja a escassos três meses de terminar o seu mandato – deixou no ar, no acto de posse do novo governo, a ameaça implícita de que ainda poderá demiti-lo!
Singrando em mar hostil, o novo governo tem porém a seu favor o enorme cansaço – português e europeu – com a austeridade e a consolação de saber que em geral nada há de mais duradouro que uma solução provisória.
Brasília, 29 de Novembro de 2015