Na última sessão da XXV Cimeira Iberoamericana, Lina (da Colômbia) e Alejo (de Cuba) partilham a leitura pública do “Manifiesto – Iberoamérica Emprende Desde La Universidad”. Traduzo, a dado passo, a passagem:
«Estamos empenhados num empreendedorismo inclusivo, sustentável e social, numa equipa de empreendedorismo, longe dos modelos individualistas e egocêntricos do passado. O velho estereótipo do empresário solitário contra as adversidades do mundo deixou de ser válido. O Empreendedorismo no século XXI se faz em equipas multidisciplinares, multiculturais e intergeracionais.»
(texto do “Manifiesto“)
Não sei se todos ou apenas alguns dos 50 mil jovens que irão “invadir” Lisboa, participar no Web Summit e intervir em centenas de conferências, leram o “Manifiesto”. Não sei, mas é muito provável que os 22 jovens que subscreveram o documento não estejam isolados e que aquele escrito traduza um sentir alargado. Não sei.
Eu li. Na parte citada, parece generoso o propósito de reenquadrar o conceito de empreendedorismo, retirando-o da ideologia neoliberal que tenho vindo a denunciar e percebo porque no mesmo documento se refere a necessidade de ir à escola reenquadrar tal ensino na linha defendida pelo “Manifiesto”.
(para ouvir, colocar o vídeo a partir de 2h 27min) .
É que o conceito antigo já por lá anda e é necessário de lá expurgá-lo.
Santana Castilho escreveu no passado dia 2 no Público: «Pelo Expresso de 22 de Outubro, fiquei a saber que está criada uma “fábrica de líderes” (sic) em Cascais. A matéria-prima para a fabricação são 10 mil alunos de 50 escolas de Cascais. Diz a notícia que se trata do “maior programa municipal de empreendedorismo nas escolas” (…) que quer “despertar o espírito empreendedor dos mais novos, dando-lhes ferramentas para encararem a criação de negócio próprio”. (…) Em matéria de parceiros, Cascais tem um de peso: a Junior Achievement Portugal, aquela associação que foi acusada por um grupo de mães e pais de andar a “doutrinar crianças a ver a família como unidade de consumo e produção”. »
Certamente por esse país fora proliferam iniciativas assim, incentivadas por Câmaras Municipais que, com a “municipalização do ensino”, cada vez se sentem com maior autoridade em influenciar os conteúdos educativos.
Oeiras não escapa, notícias recentes dão conta de que «o Município de Oeiras vai promover a 2ª edição deste projecto no ano lectivo de 2016/2017. Nesta segunda edição pretende-se que participem 500 alunos do 1º ciclo do ensino básico e 500 alunos do ensino secundário e profissional. Os professores das diferentes escolas que irão implementar e dinamizar o projecto iniciam agora, em Outubro, a formação que os dotará das ferramentas necessárias à implementação do projecto em contexto de sala de aula. Em termos metodológicos, no 1º ciclo do ensino básico os alunos irão descobrir a temática do empreendedorismo, através da personagem Gaspar, que é um rapaz muito empreendedor e que levará os alunos numa grande aventura pelo concelho de Oeiras.» Em matéria de parceiros o Município de Oeiras segue passos similares a Cascais, mas escolhe a GesEntrepreneur.
Não será fácil reverter a situação para a linha que foi apresentada na XXV Cimeira, até porque, por cá, reina a moda da “municipalização da educação”, a escola não detém uma verdadeira autonomia e na maior parte dos municípios não estão criados os Conselhos Municipais de Educação o que só por si dá condições para que o percurso de Cascais e Oeiras continue sem percalços.
Diria que, estes municípios, irão até retirar dividendos da dimensão do Web Summit e usá-los como suporte e promoção dos seus projectos…
Sobre a ideologia dominante, volto a citar um texto editado há dois anos:
«No discurso do empreendedorismo, o empreendedor é o motor da economia, um agente de transformação, dentro e fora das organizações. É o indivíduo adequado para a competitividade, ajustado ao novo regime de acumulação capitalista, portador de qualidades como flexibilidade, independência, inovação, aquele que assume riscos e busca realizar os seus sonhos de ascensão e mobilidade social. Com este conjunto de argumentações, o discurso empreendedor movimenta-se à procura de adesão às suas orientações, sob a premissa de que o trabalhador deve converter-se em empreendedor, a fim de enfrentar as novas demandas laborais do mundo globalizado e a complexa situação de desemprego.
De acordo com a proposta empreendedora, os que vivem do trabalho poderão garantir a sua posição em um mercado competitivo libertando-se das limitações do paradigma tradicional do trabalho formal. Cabe ressaltar que suas proposições destinam-se a todo e qualquer personagem presente no mundo do mercado, e ultimamente direccionado para os espaços educativos. O discurso empreendedor sustenta-se na perspectiva neoliberal de que a saída para a desocupação e o desemprego está no micro empreendimento e, em decorrência, na preparação e educação dos jovens para assumirem a condição de potenciais e futuros empreendedores”
(…)
A educação empreendedora, nos moldes como se estrutura actualmente, direcciona o estudante para aderir aos princípios da economia, sem uma visão critica e autónoma. A educação empreendedora disciplinariza e normatiza um tipo de comportamento: o você S.A.”
(…)
O que se vê são estratégias de se passar aos estudantes a ideia da necessidade de desenvolverem em si mesmos os sonhos possíveis, independente dos cenários e das responsabilidades de políticas públicas que suportem o agir empreendedor.No campo socioeconômico, essa crise explicita-se: na hegemonia do capital especulativo, fruto da expansão e intensificação do processo de internacionalização do capital; no desemprego estrutural, resultado do processo de reestruturação produtiva e da implementação de políticas de desregulamentação do mercado de trabalho; e no monopólio científico-tecnológico obtido pelas economias centrais capitalistas e corporações transnacionais. No campo ético-político, a crise expressa-se na naturalização da exclusão e no apelo ao individualismo. Esses factores implicaram uma crescente concentração do capital e um crescimento sem precedentes da exclusão social na ordem mundial, gerando, como indica Sennet (2008), a corrosão do carácter.
É possível sintetizar o movimento do mercado em duas palavras: competitividade e flexibilização. Para elas voltam-se todos os esforços de indivíduos, sociedades, Estados e governos, especialmente dos que se inscrevem na periferia do capitalismo mundial, fundamentando como indica Ehrenberg (2010), o novo culto da performance. Este ideário neoliberal do ponto de vista, por exemplo, dos organismos internacionais de educação é reforçado pela abordagem empreendedora marcada pela competitividade.
A economia deve ser supostamente regida pelas leis do mercado. O Estado tem de ser mínimo na regulação do capital e na defesa das instituições e dos bens públicos, mas interventor quando cuida dos interesses do capital, como na qualificação da mão-de-obra, na flexibilização e desregulamentação do mercado de trabalho, na defesa das patentes estrangeiras e na sustentação do mercado financeiro. O Estado deve actuar, ainda, como parceiro das grandes corporações internacionais, estabelecendo vantagens comparativas em relação a outros países, a exemplo dos incentivos fiscais e financiamentos, para atrair o capital produtivo externo, como se nota nas grandes concentrações de mão-de-obra mundiais.
Novos métodos e técnicas de organização e gestão do processo produtivo, associados à desregulamentação do mercado de trabalho resultaram em uma drástica redução nos níveis de emprego e em constantes tensões nas relações de trabalho, fruto da intensidade com a qual o trabalhador é explorado, da ameaça constante que sofre de perda do emprego, da terceirização, de seu trabalho, além do aumento de trabalhadores não integrados ao sistema produtivo.
O discurso do empreendedorismo propõe-se ser a solução para que Estados e trabalhadores se ajustem às exigências de competitividade da globalização económica. Apresenta-se como indutor da prosperidade económica, como motor do desenvolvimento económico e como alternativa ao desemprego.
(…)
in “O espírito do capitalismo e a cultura do empreendedorismo educação e ideologia”
/ Otávio Pedro Alves de Lima Júnior. Belo Horizonte, 2011″
Artigo publicado inicialmente no blog Conversa Avinagrada