São em cada vez menor número os que arriscam negar que o mundo de hoje está cheio de desigualdade e injustiça, até porque isso é algo que o recente surto de coronavírus estar a deixar ainda mais claro.
Desde a falta de equipamento de protecção individual (EPI) para as equipas de saúde da linha de frente, até aos funcionários de armazém forçados a continuarem a trabalhar em condições inseguras, são os trabalhadores da linha de frente (especialmente os dos sectores alimentares e de distribuição) que estão a correr os maiores riscos, com os empregadores e os governos a mostrarem uma deplorável falta de preocupação com a sua segurança.
Simultaneamente vemos que são os trabalhadores que mantêm o sistema em movimento; face ao surto de covid-19, são os trabalhadores que cuidam de idosos e deficientes, conduzem os autocarros, empilham as prateleiras dos supermercados e garantem que os nossos hospitais estejam seguros e limpos. Assim, a par com reconhecimento dos esforços dos profissionais de saúde, também todos os outros deveriam receber igual tratamento e melhor ainda seria reforçar as condições para todos terem a devida dignidade nos seus locais de trabalho.
É por isso que precisamos de sindicatos – o meio pelo qual os trabalhadores podem organizar-se para verem reconhecido o seu mérito – orientados para as condições de trabalho e eles foram tão importantes na fase de construção do estado-social de que a Europa tanto se orgulha, mas pouco cuida.
De facto, esta crise ilustra particularmente as razões pelas quais os trabalhadores precisam de poder próprio e não de confiar na caridade dos ricos. E um dos primeiros exemplos vem do maior deles todos, o patrão da Amazon, Jeff Bezos, que, depois de ver a sua fortuna aumentada em 23,6 mil milhões de dólares com a pandemia, exibiu a sua filantropia, ao doar 100 milhões de dólares (menos de 0,5% daqueles ganhos) para bancos alimentares norte-americanos, ao mesmo tempo que se recusa a pagar as baixas médicas, salvo para os trabalhadores infectados pelo coronavírus.
Este é apenas um dos muitos casos que expõem os limites da caridade e evidenciam quanto esta é algo bem diferente da solidariedade promovida por um sindicalismo consciente. Isso é especialmente importante na actual conjuntura (onde abunda o trabalho precário, sem rendimento garantido e de um modo geral sem segurança), onde muitos trabalhadores se encontram sem voz e sem um sentido de identidade colectiva (seja porque o movimento sindical se foi progressivamente afastando das suas origens e razões de existir, seja porque se foi subalternizando a outros interesses) e em resultado disso sem uma adequada reflexão sobre meios e objectivos, onde as opiniões divergentes sejam ouvidas, as melhores ideias sejam postas em prática e a estratégia política seja claramente explicada e entendida.
O mundo do trabalho define-se hoje, mm pouco por todo o lado, pela falta de condições dignas e pela quase extinção de uma orgulhosa cultura sindical. De facto, na maioria dos países a generalidade dos trabalhadores (especialmente os do sector privado) deixaram de ser sindicalizados ou protegidos por acordos colectivos de trabalho e quando confrontados com uma crise como a actual, não têm como reagir nem fazer ouvir as suas opiniões. Isto é particularmente sentido entre os trabalhadores das indústrias de serviços e lazer, atingidos com força pelo encerramento dos locais de trabalho devido ao distanciamento social, ou pelos do sector social onde muitos trabalhadores se confrontam com falta de acesso a equipamentos de protecção individual.
Num mundo em rápida mudança têm mudado também as relações de trabalho e a própria classe trabalhadora – onde os mais novos podem até ter melhores níveis de formação –, mas realidade é a de um mundo onde o sindicalismo e o poder sindical regridem ao mesmo ritmo que aumentam a precariedade e a desigualdade social. O processo de terceirização das economias ocidentais em curso e o crescimento que os sectores como o dos serviços e de assistência logística deverão registar em consequência das medidas de distanciamento social que acompanham a covid-19, estão a criar os novos ambientes fabris e a demonstrar, se preciso fosse, que quem neles trabalha é tão importante para o nosso quotidiano como aqueles que trabalham nos locais tradicionalmente mais sindicalizados, como as fábricas ou as ferrovias.
Ignoramos ainda como será o novo “normal” e apesar de podermos fazer campanha por um New Deal Verde ou uma transição ecológica justa, não devemos ignorar a necessidade de recuperar as antigas ligações entre as direcções sindicais e as preocupações dos trabalhadores que representam. À medida que a vida inevitavelmente se torna mais caótica à sombra de uma crise climática iminente, bem como à ameaça da automação, a única resposta é cimentar as ligações nas comunidades e nos locais de trabalho para tornar audíveis os respectivos anseios e fazer crescer a ideia que todos valemos alguma coisa, que é preciso olhar para todos e não apenas para aqueles que já concordam connosco.
O isolamento a que nos temos visto forçados tem que servir para compreendermos a diferença entre distância e solidão, entre solidariedade e caridade e compreendermos que diante do desespero e da austeridade, a solidariedade tem que continuar a ser a nossa arma mais poderosa.
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