Não importa o nome do ministro na pasta. Nem o Partido. Importa saber que a cultura existe e ela tem caminhos para o conhecimento que a educação formal sequer sonha trilhar.
Um exemplo é o clássico Macunaíma, livro de Mário de Andrade que acaba de ganhar domínio público, em janeiro. A obra, lançada em 1928, conta uma história do Brasil que não está em livro de História; mostra a gênese e a cara do nosso povo.
É literatura e sempre estará à disposição de quem quiser – e buscar – conhecer as raízes da nossa formação.
Por isso estamos salvos!
Deixem o genérico Alexandre Frota reivindicar o fim da “ideologia” na escola, a nossa luta não é essa.
A nossa luta é pela memória; memória da escravização dos índios, da escravidão africana, da ditadura militar, da miscigenação da nossa raça.
A nossa luta é pela cultura. Também pela educação, mas enquanto ela cambaleia, vamos em busca de livros, filmes e peças de teatro que nos retratem e nos ensinem a ser cada vez mais livremente o que somos!
Vamos em busca de autores como Toni C.*, ele é nóis!
Toni C.: Cultura vadia? É nóis memu vagabundo!
— Vale mais que ouro parceiro, vale mais que uma tonelada de cocaína, que os artigos mais luxuosos que você jamais irá ostentar, tá ligado?
Essa foi a introdução em tom ríspido dito a mim por um grafiteiro no fundão de Carapicuíba. Eu havia invadido sua área e emporcalhava um muro. O clima era tenso, a gangue dele era bem maior e mais mal encarada.
— Você se torna mais poderoso que qualquer rei se souber manejar 10% dessa parada. — ele falava com frieza. A parada que se referia era a arte e a cultura e para ele era como a roupa que eu vestia, — sem ela você passa vergonha e frio. — Ele ia me dizendo essas coisas enquanto desenhava com o dedo uma blusa contornando as mangas em meus braços, a gola em volta de meu pescoço e no final ainda fechou o zíper imaginário de baixo acima.
Meu silêncio no papo era muito mais por respeito do que por medo.
Foi dessa maneira que finalmente conheci o tal de Chulipa, skatista, anarquista, músico da banda Uzome-S.P., que funde punk rock com rap e muita atitude. Um mito na quebrada.
Logo, eu estava integrado à fina flor da filosofia de rua. As ideias que trocamos naquela fita converteu imediatamente eu e Chulipa em irmãos nas caminhadas, mesmo separados.
Aqueles pensamentos não são em nada diferente das reflexões desse momento: Se liga. Qualquer um, em qualquer parte do mundo, que ouse calar a cultura de seu país no primeiro dia de mandato, cai. Foi isso que o senhor do Palácio do Jaburu descobriu ao tentar extinguir o Ministério da Cultura com uma medida provisória assim que o golpe o entronou.
É mais fácil derrubar um presidente eleito do que apagar a cultura de um povo, a democracia é frágil, a cultura é resistência. Não sustentou uma semana. Foi obrigado a ressucitar. Não sem antes colecionar uma série de constrangedores “não”, vindo do “mundo feminino”.
A Virada Cultural em São Paulo se tornou um ato de 24 horas anti-Temer, 27 prédios do ministério em todos os estados foram ocupados por artistas e assim permanecem. E eis que surge, a voz da discórdia: “vocês estão tristes com o fechamento do Ministério da Cultura? Procurem o Ministério do Trabalho. Vá arrumar o que fazer.” Sentenciou o deputado da ala conservadora Marcos Feliciano se auto indicando para algum Ministério.
A temerária Regina Duarte nem hesitou: “Sou a favor da ideia de manter a Cultura internada no Hospital da Educação.” demonstrando ser uma artista rica em pérolas. O resumo é o seguinte, só reconhecemos a arte erudita e consagrada, e os artistas, excetuando os globais, são todos vagabundos.
Esse pensamento escancara o quanto é atrasado o decreto assinado no primeiro dia de mandato da era Temer, o regresso não é de quatro décadas voltando para o período anterior a redemocratização, fomos arremessados de volta para o Brasil imperial. Exagero de minha parte?
No Código Criminal do Império de 1830 encontramos uma epígrafe intitulada: “Dos mendigos e vadios”. Para aquela peça legal, os capoeiras eram enquadrados nessa categoria, compare com esse decreto de 1890, quando o país ainda era chamado de Estados Unidos do Brasil:
Capítulo XIII do código penal — Dos vadios e capoeiras Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena — de prisão celular por dois a seis meses.
Considerar o artista vadio é tão pré-histórico, que mesmo nos tempos das cavernas os melhores pintores eram dispensados do trabalho da caça e pesca. Eles entendiam que retratar a realidade em forma de figuras nas paredes, era o seu trabalho.
“Ninguém tem o direito de aprisionar o pensamento, por mais vadio que ele seja.” (Sérgio Vaz)
O ócio é parte da matéria prima do artista, sem o vazio não é possível a criação. Basta se guiar NaTrilha de Macunaíma onde o grande Célio Turino, idealizador dos Pontos de Cultura, revela as pistas entre o Ócio e Trabalho na Cidade.
E eu, cheio de trabalho e pouco ócio, era entregador na região do Brás, famosa área de comércio atacadista de São Paulo. Passava o dia carregando caixas com mercadorias dos clientes. Quando tinha um tempinho ocioso entre uma entrega e outra fazia o improvável, lia algumas páginas de um livro qualquer.
Todo mês circulava pela loja uma revista dos comerciários da região, quase um catálogo com mais anúncio das lojas da região do que algo para se ler além do editorial e um artigo sempre voltados para os donos das lojas. Num deles tratavam da terrível ameaça da redução da jornada de trabalho, “Causaria grande transtorno os funcionários ter um maior tempo livre. Voltariam a estudar, quem sabe, mais qualificados procurariam outro emprego ganhando mais, ou arrumariam qualquer coisa para fazer em seu tempo livre, ou não fariam nada”, ameaçava a revista.
Está aí, um dos maiores medo do capitalismo é o ócio, o que poderia levar as pessoas fazerem o que tiverem vontade. Fazer o que quiser? Ah, isso não é capitalismo. Talvez por isso, a punição máxima aos condenados é justamente, tcharan: “o ócio”, mas sem a liberdade e a chance de produzirem o que e como quiserem. Daí vem o preconceito com os jovens pobres dando rolezin nos shopping da cidade, esses vagabundos.
O preconceito com os estudantes que ocupam salas de aula por melhor condições do ensino, aprendiz de vagabundo.
De quem se manifesta e atrapalha os trabalhadores de servir aos patrões, tudo vagabundo.
É nóis memu vagabundo. (Racionais Mc’s) A pauta de reivindicação é simples, objetiva e traduzida em um verso entoado há três décadas pelo bom e velho rock brasileiro:
“A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte.” (Titãs)
As ocupações aos prédios do MinC seguem para ainda acrescentarem mais uma coisinha: “Respeito à democracia”. A cultura é a alma de uma nação, arranque a alma e o que sobra é só The Walking Dead. Vou girar o mundo, antes que algum desavisado diga que sou um vagabundo que vivo de Lei Rouanet.
* Toni C. é autor dos livros: Sabotage – Um Bom Lugar, e do romance O Hip-Hop Está Morto, integrante do Conselho Nacional de Cultura na área de Livro, Leitura e Literatura, membro da direção da Nação Hip-Hop Brasil, diretor de cultura da ORPAS, diretor do coletivo LiteraRUA, e integrante do Portal Vermelho.
Nota: a autora escreve em português do Brasil