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Sábado, Agosto 24, 2024

Preços constantes e preços correntes

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A generalidade dos licenciados em Economia terá concluído o curso apetrechada com o conhecimento da distinção entre preços constantes e preços correntes, necessária para comparar a dimensão da actividade económica entre períodos, tendo em conta a inflação.

Entretanto foram sendo construídos vários tipos de índices de preços no consumidor e calculados deflactores do PIB, com os quais têm sido construídos séries longas.

A conversão de valores de preços correntes para preços constantes é um exercício do qual em períodos de estabilidade de preços como o que atravessámos durante vários anos e em que o BCE se propôs estimular a economia para fazer subir os preços até 2 % quase nos desabituámos. Agora quer o BCE fazer decrescer a subida de preços para 2%…

No entanto pode estar em causa não apenas um exercício histórico de reconstrução de séries, mas a necessidade de, numa programação plurianual, orçamentar valores para vários anos.

Temos alguma experiência destas situações num período de inflação elevada que foi o dos anos 1980 e o dos governos da Aliança Democrática, sobretudo dos Governos Balsemão, e o do Governo do Bloco Central. e em que coexistiam no ainda então denominado Orçamento Geral do Estado um “orçamento de funcionamento normal dos serviços” e um orçamento de Investimentos do Plano” com expressão no Capítulo 50 do OGE e cujo projecto era elaborado pelo então Departamento Central de Planeamento.

No ano de 1981 a dificuldade de concatenar todo o processo levou a que o valor das dotações previstas no Plano fosse superior ao das dotações efectivamente inscritas no OGE para o executar. Manifestação de insanidade governativa que reflectia a incapacidade de tomar decisões e que quando muito podia ser lida como expectativa de reforço de dotações orçamentais. Mas foi igualmente neste ano que internamente aos serviços do Departamento Central de Planeamento foi decidido “simplificar” as fichas do Departamento Central de Planeamento para não exigir “demasiada” informação demais aos serviços dos Ministérios que propusessem programas e projectos para inscrição. Por exemplo suprimindo informação sobre impacto financeiros em anos seguintes. Outra manifestação de insanidade, felizmente revertida quando foram feitas substituições nas chefias(i).

João Salgueiro

Na preparação do OGE para 1982 os serviços do Departamento Central de Planeamento propuseram, Ministério a Ministério, um guião para a negociação das dotações orçamentais para os vários programas do Plano. Alberto Regueira, Secretário de Estado do Planeamento assumiu a postura proposta pelos serviços(ii), mas logo na primeira reunião surgiram dificuldades e o Ministro das Finanças e do Plano, João Salgueiro, entendeu preferível prescindir da metodologia esboçada e fixar para 1982, um plafond para cada Ministério igual ao de 1981 acrescido de 20%. João Salgueiro tinha sido o homem de Marcelo Caetano para o planeamento, a quem ele confiara poderes de Intendência Geral do Orçamento, e foi sempre uma figura de referência para os economistas. Aquando do seu falecimento recente a Ordem dos Economistas, apesar de ele nunca ter sido seu membro, organizou-lhe uma sessão de homenagem.

Cavaco Silva

Retive sempre na memória o malogro desta tentativa, que evoco aqui para que os leitores possam compreender a dimensão do processo inflacionista na altura, porque de certo modo é significativa dos bloqueios que a política orçamental foi sofrendo. Balsemão organizaria ainda um segundo Governo, em que o Ministro das Finanças viria a ser Morais Leitão do CDS, mas Ramalho Eanes acabaria por dissolver a Assembleia da República, a AD não seria renovada, as eleições seriam ganhas pelo PS formando-se o governo do Bloco Central Mário Soares / Mota Pinto para fazer e aplicar um acordo com o FMI e mais tarde Mário Soares / Rui Machete. No entanto em 1985 quando João Salgueiro estava, parecia, à beira de ganhar no PSD o Congresso da Figueira da Foz, Cavaco Silva, Ministro das Finanças da AD com Sá Carneiro e, com o apoio de Eurico de Melo, opositor interno a Balsemão, fica sendo Presidente do PSD e será mais tarde chefe a princípio, de um governo minoritário e mais tarde de dois governos de maioria absoluta. Nunca soubemos se João Salgueiro Primeiro Ministro seria capaz de cortar a direito.

Entretanto os serviços do Departamento Central de Planeamento orientaram-se para outras formas de apurar a programação: delimitando mais precisamente os conceitos de programa e de projecto, recolhendo informação sobre o escalonamento temporal dos projectos de investimento e a curva de despesas correspondente, e construindo um megaficheiro com toda esta informação, organizada em sistema de horizonte deslizante, ou seja, cada vez que se avançava um ano, recolhia-se informação detalhada sobre os três anos seguintes. Deste modo, quando entrou em vigor uma nova Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado – Lei 40/83, de 13 de Dezembro – que previa a criação em 1985 de um Mapa VII de despesas do OE relativo a programas e projectos plurianuais, foi possível publicar para cada projecto o valor acumulado das despesas de anos anteriores, o valor orçamentado para esse ano, o valor previsto para cada um dos três anos seguintes, e o crédito global no conjunto do investimento. A preços constantes ou a preços correntes? Tratando-se de um mapa para programação e controlo orçamental, os valores dos anos anteriores eram registados aos preços efectivamente pagos nesses anos, e os valores de 1985 e anos seguintes constavam do mapa a preços de 1985.

Mapa VII de despesas do OE

Ao ficheiro estava associado um código traduzindo o grau de irreversibilidade de cada projecto, ou seja os projectos comprovadamente irreversíveis seriam, numa simulação, dotados nos anos seguintes de acordo com a sua curva de investimento própria com a correcção para a inflação prevista, os outros seriam menos generosamente dotados, poderiam ver o seu valor reduzido ou poderiam ser até suprimidos ou pelo menos suspensos. Numa gestão mais racional incluir-se-iam também projectos e programa a lançar em anos seguintes, dentro da lógica de construção de uma “carteira de projectos”.

Como o leitor perceberá este sistema de programação e orçamentação plurianual servia a necessidade de controlar despesas e prestar contas, que se atenuou com a entrada para as Comunidades Europeias(iii), aliás o Ministério das Finanças e o Ministério do Planeamento e Administração do Território foram então separados.

O Estado Português organiza hoje em dia um orçamento plurianual de horizonte deslizante, associado ao Programa de Estabilidade e Convergência, mas é um orçamento de grandes números e não de programas e projectos.

O ciclo de Cavaco Silva merece entretanto duas notas no domínio da inflação.

Miguel Cadilhe

O Ministro das Finanças Miguel Cadilhe conduziu entre 1986 e 1989 uma tentativa de correcção de desequilíbrios que se traduziu na aprovação do PCEDED – Programa de Correcção Estrutural do Défice Externo e do Desemprego e em 1988 ao comprometer-se com uma taxa de inflação subjacente à actualização salarial da função pública promete corrigir se a inflação for mais elevada. Foi-o de facto e a correcção foi feita através de certificados de aforro com um período mínimo de não levantamento. Nunca percebi o coro de críticas que se levantou.

O Ministro das Finanças Eduardo Catroga que sucedeu ao “génio” Braga de Macedo procurou igualmente controlar a inflação que desceu fortemente durante 1995. Já com o Governo Guterres instalado houve necessidade de definir uma taxa de juros vincendos para o pagamento prestacional de dívidas à Fazenda Nacional e à Segurança Social adoptado em 1996(iv). Um tanto impensadamente remeteu-se para um valor médio dos juros dos certificados de aforro durante o ano de 1995: 10,125 %. Ouviram-se protestos compreensíveis pois que os juros estavam a ficar mais baixos, mas foi um grande incentivo para os devedores se apoiarem na banca para pagarem as dívidas fiscais antes de dois anos… Para além disso foi uma grande ajuda quando a Concorrência da Comissão Europeia veio a investigar se estávamos a conceder uma Ajuda de Estado…(v)

É melhor ficar por aqui antes que comece a referir que nessa altura os juros estavam mais altos que os actuais, o que até é verdade….

 

Notas 

(i) O esforço de melhoria da programação dos Investimentos do Plano aqui descrito muito deve à nomeação de Luísa Maria Leitão do Vale, técnica superior do Núcleo de Avaliação de Projectos do Centro de Estudos e Planeamento, como Directora de Serviços do Sector Público Administrativo do Departamento Central de Planeamento.

(ii) Alberto Regueira faleceu recentemente.

(iii) Ultrapassaria o âmbito deste artigo explicar como o sistema foi sendo desvirtuado.

(iv) D-Lei nº 124/96 de 10 de Agosto.

(v) Houve no âmbito de processos judiciais de recuperação de empresas juros mais baixos para pagamento de dívidas aos credores públicos, mas foram concedidos no âmbito de planos aprovados pela generalidade dos credores, em que os credores privados sacrificavam muito mais.

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