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Segunda-feira, Março 3, 2025

Preservo no fundo de mim própria um calor tipicamente português

Carlos Fragateiro
Carlos Fragateiro
Professor Universitário

Sylvie de Morais

Uma cidade que cruza mundos, onde o melhor da realidade americana e anglófona se encontra com as raízes europeias e francófonas a que tem de estar intimamente ligada para defender a sua identidade e a sua língua, com um espírito de pertença e não pertença que a torna disponível para uma abertura única a todo mundo e a todas as culturas.

Em Montréal está efectivamente todo o mundo, e todo o mundo em diálogo, e é essa vitalidade e efervescência que lhe permite produzir projectos como o do Cirque du Soleil, e ter criadores de referência como Robert Lepage ou Céline Dion. Uma cidade que tem como coração o bairro das artes ou dos espectáculos, estruturado de forma a suportar e exprimir uma vocação cultural própria e permitir um modo de vida convivial, equilibrado e atraente como só as artes podem conseguir.

Sylvie, também ela entre mundos, o canadiano/quebécois e o português, que melhor lugar poderia ter escolhido para nascer e afirmar-se como uma das fazedoras de futuros que pensamos que é.

“Sempre quis ser actriz”

Tornado: Quando é que começaste a pensar estudares teatro?

E fui vê-lo também porque ela se chamava de Vasconcelos e eu estava excitada pela ideia de admirar o trabalho de uma mulher de origem portuguesa que trabalhava e era reconhecida no Québec

Sylvie de Morais: Sinto que sempre quis ser actriz. Mas foi no secundário que ouvi falar das escolas de teatro, da dificuldade para lá entrar, dos muitos candidatos e dos poucos que conseguiam entrar. Deveria ter-me inscrito aos 16 anos, mas estava muito insegura. Era um mundo com que sonhava, mas de que só conhecia o grupo de que fazia parte e os quatro espectáculos profissionais a que assistia anualmente… Foi depois dos estudos em ciências puras, completamente esgotada por estar numa área que não me dizia nada, que dei o salto para uma escola de teatro. Tinha 20 anos.

Quais são as tuas figuras de referência ao nível do teatro?
A Companhia que marcou a minha iniciação no teatro foi a da Paula Vasconcelos: Pigeons International[1]. Descobri-a quando tinha 16 anos, e recordo esse encontro como se fosse hoje. Tinham em cena o espectáculo Cruising Paradise e fui vê-lo porque a crítica era muito boa e porque o espectáculo anterior, Savage Love, tinha tido referências excelentes e toda a gente falava dele. E fui vê-lo também porque ela se chamava de Vasconcelos e eu estava excitada pela ideia de admirar o trabalho de uma mulher de origem portuguesa que trabalhava e era reconhecida no Québec. Queria gostar dela e tê-la como modelo, o que acabou por acontecer ao longo de muitos anos.

Um dia Béland chegou com uma resma de livros nos braços e disse que íamos trabalhar o Desassossego de Fernando Pessoa. Nem imaginam como fiquei feliz…

Porque é que o teu exercício final na escola de teatro foi sobre ou a partir do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa/Bernardo Soares?

No terceiro ano da escola tivemos a felicidade de ter Marc Béland, um actor fabuloso, como encenador. Era a sua primeira encenação e quando nos encontrámos toda a gente falou dos autores que gostavam de abordar, e o nome de Pessoa acabou por se perder no meio de nomes como Philipe Minhana ou Peter Handke. Um dia Béland chegou com uma resma de livros nos braços e disse que íamos trabalhar o Desassossego de Fernando Pessoa. Nem imaginam como fiquei feliz…

Carreira preenchida em teatro, televisão e cinema

Hoje trabalhas em teatro, televisão, cinema, tens uma carreira preenchida. Podemos dizer que és uma actriz de sucesso. Quais foram até agora os projectos que te deram maior prazer e o que vais fazer nos próximos tempos?

A expressão actriz de sucesso faz-me sempre franzir o sobrolho. Não me considero como tal, pois tenho períodos em que os projectos se encadeiam uns nos outros e períodos onde acontece exactamente o contrário, períodos duma inquietante tranquilidade. Penso que é o que acontece com a maior parte das actrizes.

Acabei há pouco as filmagens duma série de televisão que durou 7 anos, Yamaska, e que foi para mim o ponto de viragem na minha carreira. A actriz que era no início e a que sou hoje são completamente diferentes. A confiança que adquiri torna-me muito mais livre, mais instintiva, mais matizada. Yamaska foi, para mim, uma escola importante. No teatro Je voudrais me déposer la tête de Jonathan Harnois foi um projecto marcante. A encenação desse espectáculo foi de Claude Poissant, o homem que admiro mais no nosso meio, o maior director de actores que conheço. Tive a sorte de trabalhar três vezes com ele e foram três grandes momentos do meu percurso.

Quanto aos projectos futuros não sei nada. Tenho duas crianças com 1 e 2 anos, e com o meu marido, também actor, decidimos desacelerar para deixarmos lugar nas nossas vidas para o projecto familiar. Retomo tranquilamente o trabalho, vou a audições e tento a minha chance, De momento sinto-me seduzida por belos papéis sem, no entanto, me deixar apanhar. Ganho a minha vida fazendo publicidade e aproveito para seguir as digressões do meu companheiro e para consumir o máximo de cultura.

Portugal vs Canadá?

Se pudesses entrar ou realizar um projecto artístico entre Portugal e o Canadá, ou entre o Canadá e os diferentes países de Língua portuguesa, que tema escolherias?

Faria sem hesitação um projecto com Portugal. Sou fascinada pela ideia de saber o que teria podido ser se os meus pais não tivessem deixado Portugal no início dos anos 70. Não teria sido o que sou, bem entendido, mas o que teria podido ser? E esta língua portuguesa que amo, que quero ensinar aos meus filhos, mas que verdadeiramente não é a minha… São questões identitárias que me inquietam e me intrigam. E este questionamento em relação aos jovens da minha idade, meus primos/primas, que cresceram em Portugal e nunca manifestaram interesse em vir a este novo continente que agora é o meu, como se os laços afectivos fossem só num sentido…

Eu nasci em Montréal, a minha cidade, a minha ilha, e, contudo, sinto-me portuguesa. Esta identidade, esta procura de identidade, esta necessidade de pertencer a um povo sem ser nem daqui, nem de lá…

Como se ao deixar o Velho Mundo tivesse virado as costas a toda uma cultura. Eu nasci em Montréal, a minha cidade, a minha ilha, e, contudo, sinto-me portuguesa. Esta identidade, esta procura de identidade, esta necessidade de pertencer a um povo sem ser nem daqui, nem de lá… Eis o tema que aprofundaria se pudesse fazer um espectáculo em colaboração com Portugal.

Como é que a língua portuguesa e este modo tão especial de estar em português no mundo influencia ou influenciou a tua forma de ser?

É uma questão que me coloco todos os dias. O facto de ter raízes portuguesas e de crescer com a cultura portuguesa vivendo fora, noutro lugar, cria necessariamente uma abertura ao diferente, ao outro. Tenho facilidade, curiosidade e orgulho em ir ter com as pessoas que veem de fora. Em Montréal a diversidade cultural é enorme, é a beleza desta cidade, e os portugueses são conhecidos aqui pelo seu calor, o seu frango com piri piri e a facilidade para se integrarem. Eu penso que sou assim: uma pessoa que abraçou completamente a cultura quebécois, mas que preserva no fundo de si própria um calor tipicamente português.

[1] A companhia que produziu o espectáculo Boa Goa de que falámos no número anterior.

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