Compreende-se que o governo e os dirigentes do PS não queiram empolar nem explorar as palavras e as atitudes do Presidente nos últimos dias. O primeiro-ministro é suficientemente experiente para perceber e ultrapassar a desfeita que elas representam. Mas o facto de jornalistas e comentadores incensarem o Presidente revelando uma gritante incapacidade de distanciamento não impede que outros olhem para os factos com cabeça fria e análise desapaixonada.
O Presidente não é alguém que tenha surgido de fora da política para salvar o país através de afectos. É um político que durante décadas a fio dispôs, como nenhum dos seus antecessores, de uma tribuna que lhe permitiu influenciar a opinião pública e fez dele o mais eficaz spin-doctor da política portuguesa, prática que mantém através de constantes aparições e declarações públicas. Marcelo não é apenas um homem de afectos que gosta de abraçar os que sofrem. É também um político que persegue objectivos próprios e que manifestamente gosta do poder e o usa nas margens das suas competências.
No discurso de 18 de Outubro, perante o País atordoado pela tragédia, o Presidente pôs em causa a continuidade do governo, coisa que não podia fazer, ao chamar o Parlamento a decidir se queria ou não que o governo continuasse. Foi um passo que nenhum Presidente ousara dar antes e que não cabe nas funções do Presidente. Que tenhamos visto, os incêndios não obstante a enorme tragédia que deles resultou, não atentaram contra o “regular funcionamento das instituições”, condição que legitimaria uma intervenção do Presidente. Não tendo os partidos que apoiam o governo levantado qualquer questão quanto à manutenção desse apoio, o discurso do Presidente só pode ser lido como uma tentativa de fazer crer aos portugueses que a “culpa” do governo nos incêndios era tão grande que a sua continuação necessitava de relegitimação.
A nova atitude do Presidente para com o Governo surge após uma vitória estrondosa do PS nas eleições autárquicas e num momento em que as sondagens davam o PS perto de poder alcançar uma maioria absoluta. A economia vai bem e a aprovação do orçamento para 2018 parece assegurada. Por outro lado, o PSD aguarda a eleição de um novo líder que necessitará de algum tempo para se afirmar no País. Inteligente e arguto, Marcelo sentiu o perigo que representaria para o papel que reserva para si próprio como Presidente, se o PS viesse a conseguir uma maioria absoluta nas próximas legislativas. Com um governo de maioria absoluta o Presidente perderia poder e influência.
As tragédias de Junho e Outubro foram, pois, a oportunidade para o Presidente fragilizar o governo. Ao ter feito saber repetidamente que tinha pressa que fossem apuradas responsabilidades (como se o governo estivesse a empatar o apuramento dos factos) induziu as pessoas a pensarem que o governo era inoperante e incompetente e que sem a sua presença e as suas palavras nada seria resolvido.
Só assim se justifica que o Presidente tenha quebrado a lealdade institucional com o governo e tenha feito tábua rasa da informação que o primeiro-ministro lhe tinha fornecido, fingindo que não sabia que a ministra Constança Urbano de Sousa ia ser demitida e que iam ser anunciadas importantes decisões quanto às populações e zonas afectadas.
O Presidente dos afectos pode ser também muito frio e calculista.
Exclusivo Tornado / VAI E VEM