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Domingo, Novembro 24, 2024

Princípios para uma Pátria da Língua Portuguesa II

Carlos Fragateiro
Carlos Fragateiro
Professor Universitário

Pessoas / Pátria da Língua Portuguesa

O conhecimento, seja pensamento ou invenção, não cessa de passar de um lugar mestiço a outro, expondo‐se sempre, não existindo por isso conhecimento puro e estável. O próprio conhecimento é tecido como uma colcha de retalhos, como um manto de Arlequim. Os saberes não se delineiam como continentes cristalinos ou sólidos fortemente definidos, mas como oceanos viscosos.

Michele Serres

A criação de plataformas, os espaços de diálogo e troca que nos permitam ter em português um olhar e uma ideia sobre o mundo e perceber de que forma esse olhar, tal como aconteceu no século XVI, pode contribuir para ajudar a inventar os futuros possíveis, um mundo diferente, só pode concretizar-se se se suportar numa sociedade de cidadãos dum outro tempo, os cidadãos do mundo e da globalização, os cromos da lusofonia como lhe chamamos.

Apesar de muitos de nós nos assumirmos como cidadãos do mundo, é ainda muito forte a dimensão do país de que somos originários, da nossa casa, o que condiciona em muito a afirmação dum projecto que vá para além da realidade dum país, como temos podido constar numa realidade muito próxima de nós como é a da cidadania europeia onde existe uma ruptura geracional entre o que poderemos chamar de geração Erasmus, uma geração que hoje já integra um número significativo de cidadãos, alguns já com mais de 40 anos, e a geração da classe política ainda no poder.

Como se pôde constatar no referendo inglês que levou ao Brexit, foram os mais jovens os que votaram pela permanência na União Europeia, mostrando como vivemos um tempo de transição para uma Europa que só terá condições de dar saltos qualitativos e de se concretizar enquanto comunidade quando uma nova geração tomar o poder.

Esta realidade acontece com o universo da língua portuguesa, e, apesar da proximidade da língua potenciar uma ligação mais forte, aliada a toda uma história vivida com cruzamentos e proximidades, tem de haver um esforço para que se interiorize a dimensão do cidadão lusófono, o cidadão que pensa e fala em português. Um processo que vai obrigar a, primeiro que tudo, a que cada um de nós seja capaz de se descentrar, e a dizer como Pessoa que a nossa Pátria é a Língua Portuguesa, ou como o Gabriel o Pensador e o Boss Ac, que:

Sou carioca de Goa, de Angola e da Guiné
Cabo Verde, Moçambique, Timor-Leste e São Tomé
Macau, Portugal mas vim pela Galicia

Que a vida é uma delícia temperada nesse sal
Cabral descobriu muito menos do que eu
Os meus descobrimentos não estão nos museus
Nem nos livros de História mas estão na minha memória
E na dos meus amigos que navegam comigo

Entrar num projecto que atravessa um universo com esta dimensão obriga a que cada um de nós se assuma cidadão da língua, dizendo como Pessoa que a nossa Pátria é a Língua Portuguesa. É sermos capazes de nos descentrarmos, no que penso ser a maior dificuldade desta ideia duma Pátria da Língua Portuguesa, e, para além de portugueses, sermos também brasileiros, angolanos, timorenses, cabo-verdianos, guineenses e moçambicanos.

Cidadãos de Muitos Mundos

O depoimento de Maria de Lourdes Sousa, nos cinquenta anos do regresso de Goa à União Indiana, mostra a multiplicidade de muitos de nós e o facto de vivermos no espaço do entre, nas fronteiras, que é onde a criatividade e as invenções acontecem.

Pertenço a uma geração que até ao processo de descolonização tinha a questão da nacionalidade resolvida. Depois fica-se entre duas pátrias. Há mesmo duas pátrias . Dizia o meu pai que um dia isto tem de voltar a ser indiano, porque é à Índia que nós pertencemos . Quando aconteceu foi uma incógnita. Olhávamos para os indianos e pensávamos afinal somos todos indianos. Mas achávamos que eramos diferentes. E sou. Só que também não era igual às raparigas de Lisboa[1]

Uma dimensão que encontramos num conjunto significativo de cidadãos dos diferentes países de comunidades, a quem chamámos os Cromos da Língua Portuguesa, como, entre muitos outros, Mário Andrade, cartoonista de Goa que, para Paulo Varela Gomes,[2] era português, indiano e goês, e ganhou o direito a que não o amarrassem às categorias de identidade nacional com que nos diminuímos como humanos e com as quais tornamos o mundo mais difícil e mais hostil, Dona Berta, a dona da pensão Central em Bissau, B.Leza, compositor e músico de Cabo Verde que compôs mornas e fados, autor da “Sôdade” imortalizada por Cesária Évora que também integra esta lista, Fernando Pessoa e os seus heterónimos, Professor Agostinho da Silva e os Jesuítas Tomás Pereira e António Vieira, o primeiro na China, onde foi conhecido como músico e astrónomo e trabalhou directamente com o Imperador, e o segundo no Brasil que, entre muitos outros, contribuíram para este modo de estar em português no mundo.

A Selecção da Língua Portuguesa

Uma lista a que é importante acrescentar todo um conjunto de personalidades que, tanto na actualidade como na história desta língua, têm dimensão universal e podem ser consideradas a Selecção da Língua Portuguesa: Sérgio Vieira de Mello e a sua luta para salvar o mundo, Jorge Sampaio e o diálogo de civilizações, António Guterres e os refugiados e agora secretário-geral das ONU, Carlos Lopes, coordenador do grupo das migrações, e, mais recentemente, José Graziano da Silva, eleito Director-Geral da FAO, todos eles com ligações às Nações Unidas, ou o ex-Presidente Lula ou uma figura como a do Rei D. João II que muitos consideram um dos maiores estrategas mundiais e o criador da matriz dos descobrimentos.

Mas também Saramago, Zeca Afonso, Xanana Gusmão, António Lobo Antunes, Ximenes Belo, Vasco da Gama, Augusto Boal, Chico Buarque, Óscar Nimeyer, Amália, Mário Soares, Samora Machel, Siza Vieira, Manuel de Oliveira, Amílcar Cabral, Prof. Egas Moniz, Salazar, Marquês de Pombal, Camões, Paula Rego, Humberto Delgado, Mia Couto, António Damásio, Henrique Galvão, José Ramos Horta, Pelé, Eusébio, como se viu com o Campeonato do Mundo da África do Sul, para não falarmos em José Mourinho ou Cristiano Ronaldo. Esta é uma lista feita a partir de um olhar português que tem, naturalmente, de ser completada com os outros olhares e perspectivas.

Todas estas são ou foram personalidades que olharam e olham para o mundo e desenham o seu mapa não só com a perspectiva do lugar onde têm a sua vida, mas a partir de diferentes lugares e perspectivas, no que é uma das grandes riquezas que temos entre mãos.

[1] “À procura de ser português”, Público (18/12/2011).

[2] Público (18/12/2011).

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores.

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