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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Procura-se Português, perdido no Brasil (I)

Carlos Fino


Portugal e Brasil estiveram intimamente ligados durante mais de três séculos. O Brasil é inclusive, em grande medida, uma 
“invenção portuguesa”, como até hoje se reconhece nalguns manuais de ensino dos dois países.

Foi no Brasil que se situou a capital do Império português quando, em 1808, a corte de Lisboa, fugindo das invasões napoleónicas, se transferiu para o Rio de Janeiro e D. João VI proclamou, em 1815, o Reino Unido.

Mesmo depois da independência do Brasil, em 1822, fortes laços continuaram a ligar os dois países, reforçados socialmente por uma emigração em massa de portugueses para o Brasil. De acordo com as estatísticas brasileiras, entre 1820 e 1968, teriam chegado ao Brasil 1.769.986 portugueses (Cervo, 2000:143).

Com a entrada de Portugal na Comunidade Europeia (actual UE), em 1986, e a formação do Mercosul, em 1991, as relações económicas e comerciais entre Portugal e o Brasil passaram a estar condicionadas pelas regras dos dois blocos.

A inexistência, até hoje, de um acordo global de comércio entre a União Europeia e o Mercosul tem limitado o progresso dessas relações, que se circunscrevem, no essencial, à troca de combustíveis (petróleo) brasileiros por bens de consumo agrícolas portugueses tradicionais (sobretudo azeite).

Ainda assim, as relações sociais e culturais entre os dois países permanecem intensas. No final do século passado, houve uma corrente de emigração brasileira para Portugal e “os brasileiros transformaram-se no maior grupo formal e contabilizado de estrangeiros em Portugal” (Malheiros, 2007:16).

Tem havido também importantes investimentos cruzados de capital, de que são exemplo, nos anos 90, a entrada de capital português no sector das telecomunicações brasileiras e, mais recentemente, a criação de uma fábrica da Embraer em Portugal.

Por outro lado, o facto de a TAP – transportadora aérea portuguesa – ter hoje mais de 70 voos semanais ligando Lisboa a uma dezena das maiores cidades do Brasil, traduz bem a intensidade das relações sociais, que abrangem, além dos contactos pessoais e familiares, as relações empresariais e institucionais, com relevo para a aproximação académica bilateral e no quadro da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

E no entanto, a gente estranha-se…

Apesar de tudo isso, existe reconhecidamente, de longa data, nas relações entre Portugal e Brasil, um certo “estranhamento”, um claro desconforto, que vai para além do natural afastamento entre colonizador e colonizado, ao qual Eduardo Lourenço se refere como “esse sentimento de uma ausência de laços vivos e vividos no presente, entre os nossos dois povos.” (Lourenço, 2004:145).

Um sentimento que a diferenciação entre os dois países, cedo iniciada, ajudou a criar e se consolidou no decorrer do processo que conduziu à independência.

Esse processo foi, com efeito, pontuado – antes e depois da separação formal, em 1822 – por episódios de alguma tensão (incluindo confrontos militares) que deixaram marcas no relacionamento bilateral. E já no final do século XIX, o apoio dado por militares portugueses a revoltosos da Armada brasileira levou o então presidente Floriano Peixoto a decretar o rompimento das relações diplomáticas com Portugal, que se prolongou de Maio de 1894 a Março do ano seguinte (Cervo, 2000:223).

Mas foi, sobretudo, a partir do movimento modernista no Brasil, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, que a separação cultural, de modos de falar, viver e sentir entre Portugal e Brasil se aprofundou.

“Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade” – escreveu então Oswaldo de Andrade no Manifesto Antropófago (ANDRADE,1928), justamente para acentuar o distanciamento em relação à matriz lusa.

A emergência dos Estados Unidos como potência dominante, a seguir à Segunda Grande Guerra Mundial, levou, por outro lado, a que o Brasil passasse a ser fortemente influenciado em termos culturais e de modo de vida pelos padrões norte-americanos.

Como me dizia, há dias, uma professora universitária brasileira, “preferimos ser enteados dos EUA que filhos de Portugal”.

Apagão mediático português

O afastamento/estranhamento entre Portugal e Brasil agrava-se também devido à quase total ausência de relacionamento institucionalizado entre os media dos dois países, um vazio mediático que tem produzido ou alimentado a sensação de (in)comunicação.

O jornal Público dedicou recentemente, ao longo de vários meses, toda uma série de reportagens ao Brasil, mas a iniciativa (surgida no âmbito do Ano de Portugal no Brasil e do Ano do Brasil em Portugal) teve carácter unilateral e não altera o essencial – a inexistência de vínculos regulares e institucionalizados entre os media dos dois países.

Basta referir que, com excepção dos acordos entre a brasileira TV Globo e a portuguesa TV SIC, centrados nas telenovelas, apesar da língua comum, não existem (e quando existem pouco se executam) protocolos de cooperação entre jornais, rádios, agências de notícias ou estações de televisão de um e outro lado do Atlântico.

Graças à expansão e influência da música popular brasileira (MPB), primeiro, e das telenovelas, depois, a penetração da indústria cultural brasileira de massas em Portugal é intensa, o mesmo não acontecendo no sentido inverso. Uma assimetria que, dada a desproporção entre as dimensões dos dois países, só poderia ser colmatada com uma forte presença da informação portuguesa no Brasil – edições brasileiras de jornais portugueses, maior visibilidade dos correspondentes portugueses no Brasil, penetração efectiva da agência Lusa no mercado brasileiro, mais esforços concertados dos mediaportugueses, públicos e/ou privados para garantir acesso ao espaço mediático brasileiro, etc. – o que não se verifica.

Contrariamente ao que seria desejável, de há uma dezena de anos para cá, acentuou-se mesmo o que poderíamos designar por apagão mediático português no Brasil.

Bem ilustrativo desse apagão é o facto de a RTP – rádio e televisão pública portuguesa – ter criado, desde o regresso de Portugal à democracia, em 1974, estruturas fortes em todos os países de língua oficial portuguesa, excepto no Brasil.

Ou seja, não há esforço especificamente direccionado ao Brasil por parte dos media portugueses, quer privados, quer públicos. Aquilo que existe (RTP, SIC…) são emissões genéricas com base na produção interna que não têm em conta a especificidade do público brasileiro e por isso não conseguem com ele verdadeiramente comunicar.

Por outro lado, em 2004, por decisão unilateral da Globo, a RTP Internacional foi retirada da maior rede de distribuição por cabo (NET), perdendo, de um dia para o outro, de acordo com responsáveis daquela estação pública portuguesa, 2/3 da sua audiência.

As emissões da SIC Internacional, que desde então passaram a ocupar o lugar da RTP Internacional, parecem menos envolvidas do que aquela no relacionamento com as comunidades e a sua grelha de programação, elaborada, a exemplo do que já acontecia com a grelha da RTP, apenas com base em produtos das emissões internas, também não dialoga verdadeiramente com o público brasileiro.

Para acentuar ainda mais este quadro, a Agência Lusa, que no final dos anos 90 chegou ter uma delegação em Brasília e que criou depois, em 2004, uma redacção em São Paulo responsável pela Lusa-Brasil, há muito que extinguiu ambas essas unidades, tendo na prática arriado bandeira no Brasil, onde trabalha hoje com recurso a meros “freelancers” sediados em São Paulo e no Rio de Janeiro, que produzem um fluxo de informação do Brasil para Portugal, mas não curam de penetrar no mercado brasileiro.

Não sendo verdadeiros representantes da empresa, os “freelancers” não exercem a vertente “diplomática” que caberia a um chefe de delegação/correspondente pleno executar nem exploram de forma sistemática, como também caberia àquele fazer, as possibilidades de penetração da agência Lusa no imenso mercado local.

A tendência é, portanto, para serem apenas accionados em casos de urgência ou para cobrir a agenda oficial – visitas de ministros, entidades oficiais, etc. – que tende a tornar-se dominante, num fluxo unilateral do Brasil para Portugal, o qual acaba por não cobrir verdadeiramente nem o Brasil nem a projecção histórica portuguesa no Brasil. A ausência mediática da parte portuguesa no Brasil prologa e acentua o sentimento de “estranhamento” nas relações bilaterais, gerando um sentimento de (in)comunicação.

(Continua…)

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