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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

As fronteiras do poder judicial

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

A acusação formal do Vice-Presidente de Angola pelo Ministério Público português, num caso de corrupção, suscitou-me algumas reflexões que gostaria de partilhar com o leitor. Porque, na verdade, o caso me pareceu politicamente muito complexo e delicado!

Em particular, pelos efeitos que está a provocar no sistema de poder angolano, quando está em curso um processo eleitoral e uma complexa transição de poder, mas também nas relações bilaterais, tendo já causado a suspensão da visita da Ministra da Justiça a Angola e também, provavelmente, a do Primeiro-Ministro, António Costa.

E até me pareceu que seria legítimo pensar, pelo simbolismo e alcance da decisão, que o Ministério Público português acabou de assumir o poder de “declarar guerra” a um Estado estrangeiro soberano! Sim, porque Manuel Vicente é um cidadão estrangeiro, número dois do Estado angolano e, por isso, também detentor de imunidade diplomática, não se sabendo sequer qual o destino que terão as cartas rogatórias enviadas e não estando o alegado ilícito enquadrado no raio de acção do Tribunal Penal Internacional, dada a sua natureza! Temos, pois, neste caso, ingredientes mais do que suficientes para suscitar uma reflexão profunda sobre os limites da acção do Ministério Público (MP). Num registo muito claro e limitado: a acção e os seus efeitos sobre o sistema de poder angolano e sobre as relações entre os nossos dois países.

A justiça e a política

E, a este propósito, não pude deixar de recordar o desmantelamento do sistema político italiano, nos anos ’90, pelo Juiz Antonio di Pietro, que, mais tarde, teria de se retirar da política por motivos menos nobres. E confesso, vistas as consequências, que até tenho dúvidas se o que se seguiu melhorou o sistema de governo de Itália. E as incursões do Juiz espanhol Baltazar Garzón por terras do Chile, até cair em desgraça. Num assunto que, todavia, se enquadrava claramente no raio de acção do TPI. E também me lembro do grande paladino da verdade, o Procurador Ken Starr, que perseguiu o Presidente Bill Clinton até ao quase impeachment, por este, que era casado, não ter revelado publicamente que teve um “affaire” com a Senhora Lewinsky. E, mais recentemente, do Juiz Sérgio Moro, que divulgou um telefonema entre Lula da Silva e a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff (tendo, posteriormente, pedido desculpa por ter feito o que não devia). E dos processos a Sarkozy por financiamento partidário, acabando este afastado da corrida ao Eliseu. E, também, do processo em curso contra o candidato presidencial François Fillon (já em queda nas sondagens), que pode vir a ser acusado judicialmente por ter dado emprego (aparentemente injustificado) a sua mulher. E de Marine Le Pen que se recusa a depor durante o período eleitoral, num processo que envolve fundos partidários, por este interferir directamente nos destinos da República, em jogo nestas eleições. E a lista não teria fim. Parece que estamos, portanto, perante uma crescente interferência da justiça nos processos políticos, nacionais e internacionais, em largo espectro!

O caso

Um procurador português está acusado de ter arquivado um processo que visava Manuel Vicente – agora acusado formalmente pelo MP, enquanto corruptor -, a troco de dinheiro. Coisa grave, sem dúvida. A começar pelo próprio MP que, através de um dos seus, se vê envolvido em actos de corrupção. E a acabar em alguém que se encontra neste momento no vértice de um Estado soberano com quem Portugal tem relações muito estreitas. E é aqui que surge o problema e a dificuldade. Ou seja, o problema da relação entre meios e fins, entre causas e efeitos, quando a desproporção se torna gigantesca, colocando-se a questão da adequação de uns em relação aos outros. E quando os efeitos se tornam incomensuravelmente maiores do que as causas, como dizia François Furet a propósito dos efeitos da Grande Guerra sobre a história mundial. Pode haver pequenos gestos (que até sejam correctos) que, por conterem em si um grande potencial devastador, devam ser muito bem avaliados antes de serem praticados. Às vezes, o problema até se pode resolver com o bom-senso. Mas quando se trata de instituições do Estado é mesmo obrigatório introduzir sempre nos processos decisionais a variável “consequências” (sobre a sociedade, sobre as gerações futuras ou sobre as relações internacionais). Porque, na verdade, alguns actos de normal e justificada administração podem induzir efeitos em boomerang tão intenso sobre o sistema que seja aconselhável evitá-los ou tratá-los com o maior cuidado. No caso do Vice-Presidente de Angola, os autores da acusação formal e a hierarquia do Ministério Público calcularam os efeitos devastadores que esta acusação formal – e a correspondente divulgação – poderia ter? Angola é um Estado soberano e o acusado é a segunda figura deste Estado. Não poderia esta acção vir a ser considerada, como, de resto, já foi, um acto de agressão de Portugal a Angola, com todas as consequências que isso poderia ter, designadamente para as empresas e pessoas que estão estabelecidas neste país e para as relações ente dois Estados soberanos com tantos interesses comuns? O MP já tem o poder de “declarar guerra” a um Estado soberano, provocando efeitos infinitamente superiores à sua causa? Alguém diria: “É a política, estúpido!”. E com razão.

 Estranhas coincidências!


O que não deixa de ser curioso é que Manuel Vicente é também atingido na Operação Marquês, por contactos mantidos com José Sócrates, ao mesmo tempo que é uma figura em queda no sistema de poder angolano, primeiro na Sonangol e, depois, na Presidência, uma vez que foi preterido em relação ao agora anunciado sucessor de José Eduardo dos Santos, João Lourenço. A pergunta maliciosa que ocorre fazer é a seguinte: com esta acusação não estará o Ministério Público português a interferir no processo de defenestração política de Manuel Vicente, em Angola? Se o visado fosse, por exemplo, João Lourenço o MP agiria nos mesmos moldes? E com que consequências? E esta acusação tem alguma relação simbólica com o desenlace da Operação Marquês (por via de Sócrates e de Ricardo Salgado)? Porquê, agora? O “Expresso” do passado Sábado dá-nos bem conta dos efeitos desestabilizadores que esta acção do MP está a ter numa Angola que se prepara para eleições, para uma profunda transição no poder e para novos reequilíbrios de poder.

De qualquer modo, e até por estas razões, este é um dos casos em que o efeito é certamente muito superior à causa e, por isso, deveria ter sido tratado com o necessário cuidado.

O papel da Procuradora-Geral da República

papel da Procuradora-Geral da República
A pergunta que ocorre fazer é a seguinte: que papel tem neste processo a Senhora Procuradora-Geral da República (PGR), enquanto máxima responsável do Ministério Público e pessoa (formalmente) da confiança do poder político? Calculou os efeitos que esta acção do MP iria ter em Angola? É que pela natureza do cargo o PGR tem particulares responsabilidades na gestão de dossiers desta natureza, ou seja, de dossiers que implicam níveis mais elevados de poder institucional e mais ainda quando se trata de Estados estrangeiros. Não é por acaso que o PGR é proposto pelo Primeiro-Ministro, é nomeado pelo Presidente da República e não tem que ter requisitos formais iguais aos dos outros magistrados. Ou seja, em palavras muito claras, o PGR tem funções que ultrapassam em muito o plano meramente jurídico, devido à sua posição de charneira, de ligação e de interface do poder político com o poder judiciário. Mesmo que os seus poderes sejam limitados, o PGR tem certamente de estar em condições de, pelo menos, exercer uma responsável “magistratura de influência”! Caso contrário, verificar-se-á um injustificável desequilíbrio entre o seu estatuto e o seu efectivo poder! Por isso, se esta acção do MP for considerada como intempestiva e politicamente disruptiva, a Senhora Procuradora-Geral da República terá nisso a sua quota parte de responsabilidade. E, a ser assim, não deixará de haver quem já comece a sentir saudades dos tempos do PGR Cunha Rodrigues! Não se discute, de modo algum, que a justiça deva ser cega. Mas, certamente, existem bordões procedimentais que podem ajudar na escolha do caminho mais adequado…

Os media e a justiça

Este assunto chama a atenção uma vez mais – e é isso que aqui, no essencial, está em causa – para o poder excessivo que o poder judiciário está a exibir, e não só em Portugal. Este poder está a transformar-se cada vez mais numa sofisticada e eficaz arma de luta pelo poder (veja-se, por exemplo, o que está a acontecer hoje em França)! Sobretudo quando se verifica uma crescente personalização da política e, por isso, uma mais fácil imputabilidade (ética e jurídica) de quem detém o poder. E, neste processo, o establishment mediático tem-se constituído como parte activa, tornando-se ele próprio sujeito de investigações muito pouco claras quanto aos fins. Um ministro ameaça com as suas decisões a posição de um canal televisivo, põem 15 ou 20 jornalistas a investigar a sua vida e, depois, com resultados à mão, julgam-no em prime time, ao mesmo tempo que accionam um processo judicial. Chama-se a isto jornalismo de investigação. Que tanto pode ser honesto como desonesto, não esquecendo que os media se comportam como um poder, desde os tempos remotos do Tocqueville de “Da democracia na América”. Os casos abundam, para um lado e para o outro. Mas uma coisa é certa: as garantias (jurídicas) que ao longo dos séculos foram penosamente conseguidas, caem como castelos de cartas perante esta novíssima forma de “administração da justiça”! Os casos são cada vez mais frequentes. Acresce, ainda, que se tem vindo a verificar uma promiscuidade absolutamente intolerável entre o poder judiciário e o establishment mediático na gestão dos processos. O mais conhecido é o do ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, com a divulgação ao minuto das peças processuais obtidas por assistentes ao processo que continuam a desempenhar as funções de jornalistas sobre o mesmo processo onde são assistentes (ferindo o respectivo código ético [1]). O segredo de justiça já passou à história, ultrapassado que foi pelos factos. Não é, todavia, de hoje esta promiscuidade, havendo já uma vasta bibliografia sobre o assunto.

Separação de poderes?

Mais interessante ainda é a posição dos próprios agentes políticos sobre tudo isto. Em Portugal assobia-se para o lado, na esperança de que a vida pessoal não venha a ser investigada por jornalistas ou pelo Ministério Público, não compreendendo que, assim, já se está a agir sob coacção, aumentando o poder de quem subtilmente infunde medo. A fórmula é conhecida e já enjoa: “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”; e, já agora, “à imprensa o que é da imprensa”, enquanto, no mais indefinido dos critérios, tudo é considerado de “interesse público”. Muito bem, se a justiça e um certo jornalismo não estivessem cada vez mais a entrar no terreno da política, exorbitando claramente das competências e funções! É-se escutado e investigado, directa ou indirectamente, a pretexto de uma denúncia, que até pode ser anónima. Um modo cómodo e até agradável de investigar, sobretudo se for depois de jantar. O espectro de um big brother, que não é político, paira sobre a nossa frágil democracia. É certo que a separação de poderes é fundamental, mas também é certo que os poderes são separados, não sendo hierarquicamente iguais, e não podendo ser a separação válida num só sentido, a de quem tem o poder de escutar. Na verdade, enquanto a legitimidade do poder legislativo é de natureza, digamos, ontológica, a do poder judicial é de natureza meramente técnica. Só que esta tecnicidade, a que acresce autonomia plena, já se tornou verdadeiramente ontológica, tal foi o crescimento do seu poder invasivo junto dos outros poderes.

A anemia do poder político

A verdade é que por muitas outras razões – designadamente devido à globalização, à dependência dos mercados financeiros internacionais, a que se juntam as famosas agências de rating, à crise da representação, à personalização excessiva do poder e à natureza do novo espaço público – o poder político de natureza representativa está cada vez mais anémico. Mas também é verdade que os agentes políticos nada fazem para reverter a situação, deixando-se, por um lado, nas mãos dos populistas (como está a acontecer) e, por outro, nas mãos de outros poderes (designadamente mediático e judiciário) de que estão a ficar cada vez mais reféns. Até pelas fragilidades pessoais que uma boa parte das elites tem vindo a revelar perante a cidadania.

Tudo estaria bem se por detrás desta utopia interesseira e perigosa da transparência total não estivessem também interesses ocultos que se protegem iluminando com os holofotes de serviço os pecadores presentes no palco da política, ao mesmo tempo que favorecem aqueles que, nos bastidores, melhor sintonizam com as suas próprias estratégias e interesses.

Enfim

Regressando, pois, ao começo deste artigo, o caso de Angola levanta uma questão de fundo acerca dos limites da acção do Ministério Público, quando se verifique que ela se inscreve num claro quadro onde os efeitos superam em grande medida as causas, implicando dimensões que interferem directamente no funcionamento global do sistema social ou das relações internacionais. O que parece ser o caso de Angola: anulada a visita da Ministra da Justiça (por acaso de origem angolana), em causa a visita oficial do nosso PM a Angola para a resolução de urgentes problemas financeiros das empresas que lá operam, eleições presidenciais, transição do poder, complexos reajustamentos no sistema de poder angolano, etc., etc…

O poder judiciário tem o dever de se proteger a si próprio, porque quando assistirmos ao fim da sua própria credibilidade, depois da queda de credibilidade do sistema financeiro, o caminho ficará aberto para soluções onde todos temos a perder, incluído ele próprio. E os populismos estão a encontrar cada vez mais terreno fértil para a conquista de um poder que tenderá a não respeitar, esse sim, a separação de poderes!

[1] Cfr. Jornal Tornado, 31/10/2015 – “Assistente é alguém com interesse na condenação do arguido. Deixa de ser Jornalista“, por Dr. Tomaz de Albuquerque, Advogado

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