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Sábado, Dezembro 21, 2024

Programa de Governo na área da saúde não responde às necessidades do país

Eugénio Rosa
Eugénio Rosa
Licenciado em economia e doutorado pelo ISEG

Esta é a segunda parte de um estudo com o título “O agravamento das dificuldades do SNS, a falta de medidas no programa do atual Governo, o aumento das despesas das famílias com a Saúde e a explosão do negócio privado de saúde em Portugal à custa do SNS, da ADSE e das famílias.






Estudo –  2.ª Parte

A simples leitura do programa apresentado pelo atual  governo (XXII) leva à conclusão que não existe, por parte deste, a intenção de acabar com o subfinanciamento crónico que está a destruir o SNS pois o ponto do programa que se refere ao SNS – “Um SNS mais justo e inclusivo que responda melhor às necessidades da população (págs. 18-22 do programa) – não se encontra uma única palavra dedicada a este problema nem se vislumbra qualquer intenção de reforçar as transferências do OE para o SNS.

A situação de subfinanciamento do SNS vai continuar, não apenas pela omissão na parte do programa do atual governo dedicada ao SNS, mas fundamentalmente pelo que consta logo no inicio do programa, que constitui a trave mestra de toda a política futura, segundo o próprio governo, e que se transcreve para alertar todos os portugueses, que é a seguinte: “O cenário macroeconómico para os próximos quatro anos perspetiva-se marcado por um quadro de maior incerteza: a evolução da economia internacional face aos quatro anos anteriores; o contexto de abrandamento do crescimento da economia mundial, cuja dimensão e duração é difícil de antecipar; e a manutenção de um quadro de tensão comercial entre os principais blocos económicos. Do ponto de vista político, a Europa caracteriza-se por um ciclo que tenderá a ser influenciado por forças que não são favoráveis ao aprofundamento da integração europeia. Todos estes fatores de incerteza tendem a induzir um abrandamento do crescimento do PIB na generalidade das economias” (pág. 4).

E certamente, como a economia portuguesa é aberta e dependente do exterior, inevitavelmente sofrerá esse abrandamento. Neste contexto já de si negativo, o programa afirma como grandes objetivos para a legislatura que agora começa, não o crescimento nem o desenvolvimento do país, mas o seguinte nas palavras do próprio governo: “O caminho traçado para os próximos quatro anos deverá permitir reduzir a dívida pública para próximo dos 100% do PIB no final da legislatura. Este é o primeiro objetivo a reter: a dívida pública desce para próximo dos 100% do PIB no final da legislatura que agora se inicia” (pág. 4).

Num contexto macroeconómico desfavorável como o próprio governo prevê, pretender ter como objetivo principal de toda a legislatura reduzir a divida dos atuais 118% do PIB  para 100% do PIB, ou seja, 18 pontos percentuais, quando na anterior legislatura se conseguiu reduzir apenas 11 pontos percentuais, pois passou “de 129% do PIB em 2015 para 118% do PIB em 2019” (pág. 3), e isso foi conseguido com um corte significativo no investimento publico e com imposição de cortes e cativações na despesa publica corrente que deixou os serviços públicos de rastos e com graves dificuldades até no seu funcionamento normal, de que o SNS é um exemplo, afirmar neste contexto que a politica de austeridade, mitigada no anterior governo devido à pressão dos partidos de esquerda, vai agora ser agravada é um escândalo.

E tal conclusão é reforçada pela seleção de 2º objetivo  que, nas próprias palavras do programa do governo , é o seguinte: “o segundo objetivo a reter: o saldo primário deve manter-se perto dos 3% do PIB” (pág. 3), o que significa que o governo pretende obter um saldo orçamental primário positivo, ou seja, antes de pagar os encargos com a divida, superior a 6.000 milhões € por ano. Portanto, tudo tem de se subordinar aos dois maiores objetivos deste governo, e para alcançar uma redução da divida pública com aquela dimensão (18 p.p.) e para obter um saldo positivo desta natureza (3% do PIB/ano) o governo terá, ou de aumentar bastante os impostos (ele promete que não o fará) ou então terá de reduzir ao mínimo o crescimento da despesa pública, o que significa que o subfinanciamento crónico do SNS e da Administração Pública vai continuar e, consequentemente, dos serviços públicos. Centeno não faz milagres apenas sabe cortar e cativar.

 

O aumento dos profissionais do SNS associado à promiscuidade público-privado, à interferência do Governo na gestão diária, a submissão total do Ministério da Saúde ao das Finanças, que está a destruir o SNS e a alimentar o crescimento dos grupos privados de saúde, e a necessidade de introduzir a exclusividade no SNS

O número de profissionais de saúde tem aumentado como revelam os dados da DGAEP (quadro 4)

 

Quadro 4 – Variação do número de profissionais de saúde no período 2011-2019

ADMINISTRAÇÕES PÚBLICAS 31 Dez. 2011 30 Set. 2015 30 Jun. 2019 2011/2015 Governo PSD/CDS 2015/2019 Governo PS 2011/2019
Médicos 25 049 26 914 30 515 1 865 3 601 5 466
Enfermeiros 42 769 41 338 47 075 -1 431 5 737 4 306
Tec. Diag. e Terapêuticas 8 935 8 563 9 420 -372 857 485
Técnico Superior de saúde 1 913 1 883 1 391 -30 -492 -522
TOTAL 78 666 78 698 88 401 32 9 703 9 735
Fonte: Direção Geral da Administração e Emprego Público (DGAEP) – 2º Trim. 2019 – Ministério das Finanças

Entre 2011 e 2019, o número de profissionais de saúde nas Administrações Públicas, inclui SNS e Serviços Regionais de Saúde, aumentou em 9.735, sendo apenas 32 durante o governo PSD/CDS e 9.703 no governo PS. Os profissionais que mais aumentaram foram os médicos – 5.466 – sendo 3601 durante o governo PS. No entanto, as suas condições de trabalho e de vida agravaram-se enormemente durante este período, a começar pelos seus ganhos como se mostra no quadro seguinte, o que está a contribuir fortemente para a destruição do SNS, ignorado e não compreendido por muitos.

 

Quadro 5 – Variação do poder de compra dos ganhos líquidos dos profissionais de saúde – 2009/2019

CARGO / CARREIRA / GRUPO Ganho Médio Mensal Liquido (após deduções para IRS, ADSE, CGA / SS) a preços correntes (deduziremos e depois induzimos os subsidio de refeição) Ganho Médio Mensal liquido de 2019 a preços de 2009 Variação do Poder de Compra do Ganho Médio Mensal Liquido entre 2009 e 2019
2009 2019
TOTAL (de todas as Administrações Públicas) 1 230,7 € 1 195,9 € 1 067,8 € -13,2%
Assistente técnico/administrativo 869,0 € 846,6 € 755,9 € -13,0%
Assistente operacional 648,3 € 700,5 € 625,4 € -3,5%
Médico 2 240,3 € 2 080,0 € 1 857,1 € -17,1%
Enfermeiro 1 151,4 € 1 151,0 € 1 027,7 € -10,7%
Téc. Diagnóstico e Terapêutica 1 069,0 € 1 054,2 € 941,2 € -12,0%
Técnico Superior de Saúde 1 509,5 € 1 377,2 € 1 229,6 € -18,5%
Fonte: Síntese Estatística do Emprego Publico (SIEP) – 2º Trim. 2019 – DGAEP – Ministério das Finanças e Administração Pública

Os ganhos médios dos profissionais de saúde sofreram, entre 2009 e 2019, uma redução significativa no seu poder de compra (entre -10,7% e -18,5% conforme as categorias profissionais) como os dados do próprio Ministério das Finanças e da Administração Pública reconhecem, o que associada à falta de carreiras e de condições de trabalho dignas, devido ao investimento insuficiente causado pelo subfinanciamento crónico, determina uma elevada promiscuidade público-privada dos profissionais de saúde que trabalham simultaneamente no SNS e nos grandes grupos privados de saúde.

E na nova Lei de bases de saúde (Lei 95/2019) não se encontra qualquer medida concreta que possa pôr fim à elevada promiscuidade público privada dos profissionais de saúde que existe no SNS , pois limita-se a estabelecer no nº3 da sua Base 29 o seguinte” O Estado deve promover uma política de recursos humanos que valorize a dedicação plena como regime de trabalho dos profissionais de saúde do SNS, podendo, para isso, estabelecer incentivos”. Mais uma vez boas intenções, mantendo tudo dependente do arbítrio do governo e, nomeadamente, do seu ministro todo poderoso das Finanças.

Apesar do número de profissionais de saúde ter aumentado com o 1º governo PS de António Costa a situação do SNS, a promiscuidade público-privado não diminuiu, pelo contrário até aumentou como a transcrição seguinte mostra:

 

  • 70% dos especialistas não estão em dedicação exclusiva. No caso dos médicos hospitalares, a presença intermitente é ainda maior e chega aos 80%. A todos estes profissionais sem exclusividade é permitido trabalhar em simultâneo no privado e trocar as horas extras nas Urgências das suas unidades por outras que pagam mais à tarefa, incluindo no SNS. O objetivo de dar resposta aos portugueses continua a falhar;
  • Segundo a Administração Central do Sistema de Saúde, apenas 5587 especialistas estão em exclusivo, isto é, 30% do total de médicos no SNS em 2018 (18.835);
  • Nos hospitais são somente 2504, 20% deste sector (12.448). Mesmo que os médicos queiram trabalhar só no Estado não podem fazê-lo;
  • A figura laboral da dedicação exclusiva foi retirada da Saúde em 2009 porque era cara”;
  • No Relatório Social do Ministério da Saúde e do SNS de 2018, no quadro 6 da pág. 56, refere-se que 9.191 médicos têm contratos a prazo ou a termo certo”.

 

A acentuada promiscuidade público-privada dos profissionais de saúde, devido a ausência de remunerações, carreiras e condições de trabalho dignas, em relação à qual  ninguém tem a coragem de tomar medidas concretas para a eliminar, está a contribuir para a baixa produtividade que se verifica no SNS e, consequentemente, para a sua destruição, apesar do esforço de muitos dos seus profissionais. O SNS enfrenta graves problemas de má gestão que resultam não só do subfinanciamento crónico e do forte endividamento,  mas também da interferência diária e permanente do Ministério das Finanças na sua gestão, da falta de autonomia e, consequente desresponsabilização que tudo isso gera, o que é agravado pela nomeação pelo governo de administrações, em muitos casos onde não impera o critério de competência mas fundamentalmente o de fidelidade e obediência ao governo, o que contribui para agravar as suas dificuldades e para a explosão do negócio privado da saúde.

No contexto do SNS, o problema da exclusividade dos profissionais de saúdeos profissionais de saúde devem ter a liberdade de escolher em trabalhar no SNS ou nos grandes grupos privados de saúde, mas o que não se pode permitir é que trabalhem simultaneamente nos dois  devido à promiscuidade e baixa produtividade que isso determinaé uma questão vital para a defesa do SNS. A promiscuidade público- privada dos profissionais para além de contribuir para agravar enormemente as dificuldades do SNS é também um importante instrumento de financiamento do negócio privado da saúde em Portugal e, nomeadamente, dos grandes grupos de saúde à custa do SNS como vamos também mostrar.

No programa do atual governo, a exclusividade não é apontada como um objetivo a atingir, apenas é referido “a celebração de pactos de permanência no SNS após a conclusão da futura formação especializada, na opção pelo trabalho em dedicação plena” (pág. 20). E embora afirme que é necessário “combater a politica de baixos salários, repondo a atualização anual da Administração Pública” , logo a seguir contradiz-se o que se afirma antes dizendo que o “cenário de responsabilidade orçamental apresentado contempla um aumento anual da massa salarial de 3% na Administração Pública” (pág. 9) o que corresponde, para a Administração Central, um aumento de 374 milhões €, quando as progressões nas carreiras custaram 200 milhões € em 2019 (pág.8) . Se deduzirmos este valor ficam 174 milhões €, o que dividido pelo número de trabalhadores do Estado dá, a cada um, 23,8€/mês.

Para além do referido anteriormente, o programa do governo, de “importante” apenas refere a construção de novos hospitais e  a recuperação de outros, mas não indica quais e quantos (pág.11); a eliminação faseada das taxas moderadoras nos Centros de Saúde (pág. 19), e que não haverá novas PPP na área clinica (pág.19), o que significa que pode haver PPP na área da construção e que podem continuar as PPP, abrangendo as 2 áreas, que existem.

 

A interferência do Governo na gestão da ADSE, a falta de autonomia, a incapacidade para tomar decisões, o pântano da “negociação” das novas tabelas para não criar “problemas ao Governo” que é aproveitado pelos grandes grupos privados e a degradação dos serviços prestados aos beneficiários

Uma situação muito semelhante à que se verifica no SNS também existe na ADSE, embora esta não seja financiada pelo Orçamento de Estado mas fundamentalmente com os descontos dos trabalhadores e aposentados da Função Publica (mais de 600 milhões €/ano).

O Ministério das Finanças tem impedido o alargamento da ADSE  aos trabalhadores com contratos individuais de trabalho (cerca de 100.000), pondo assim em causa a sua sustentabilidade; interfere na gestão corrente através dos dois membros nomeados pelo governo para o conselho diretivo, coloca obstáculos à contratação de trabalhadores necessários para prestar melhores serviços aos beneficiários (o pagamento de reembolsos aos beneficiários continua com atrasos superiores a 3 meses) e necessários  também para combater  com eficácia a fraude, o consumo excessivo e desnecessário promovido pelos prestadores (o que é uma ajuda aos grandes grupos de saúde), e chega a impor à  ADSE, para compensar a falta de trabalhadores,  que lance concursos para “comprar horas de trabalho” a empresas de trabalho temporário pagando apenas 4,77€/hora, aos quais nenhuma empresa concorre, mas que servem para adiar a resolução do problema, contribuindo assim para a degradação e destruição da ADSE e para a insatisfação dos beneficiários que a financiam.

Para além disso, faz cortes e cativações arbitrárias no orçamento da ADSE, o que determina que nos últimos meses a ADSE nem tenha cobertura orçamental para pagar aos prestadores os cuidados de saúde realizados aos beneficiários, obrigando a ADSE a mendigar ao Ministério das Finanças reforços para poder funcionar, os quais são sempre demorados e dados com meses de atraso.

Situação análoga se verifica em relação à contratação de trabalhadores em que nada se pode fazer sem autorização previa do Ministério das Finanças. É o estrangulamento e a destruição da ADSE feita pelo governo, embora ela não seja financiado pelo Orçamento do Estado para depois a privatizar e a transformar numa numa seguradora de saúde como exige a direita. E isto apesar da ADSE, com 1.200.000 beneficiários, libertar o SNS de uma parte importante das suas responsabilidades e custos, pois se não existisse a ADSE, com o paradigma atual,  situação do SNS, que já é grave, seria pior pois teria prestar serviços de saúde à maioria de 1,2 milhões de beneficiários da ADSE. E estes serviços não seriam pagos pelo Orçamento do Estado mas sim com os descontos dos trabalhadores e aposentados da Função Pública (600M€/ano).

 

 





 


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