Dando sequência à matéria sobre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021, entrevistamos a juíza, professora universitária e escritora Valdete Souto Severo.
Não por acaso, ela acaba ela acaba de publicar artigo em um livro sobre “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – reflexões, implementações e desafios”, mostrando-se uma especialista no tema que trabalha já tem tempo.
Para Valdete, o Protocolo é bastante positivo, mas “tem uma importância simbólica, sobretudo porque ele reflete na verdade um estudo feito por grupos que pesquisaram e passaram a conhecer em vários conceitos que são importantes para quem ainda não está familiarizado com a questão”.
Principalmente porque o Protocolo entra “em rota de colisão com decisões do próprio CNJ em questões que atingem mais, por exemplo, a população feminina negra”.
De acordo com ela, apesar de alguns avanços, a sociedade brasileira tem muito o que caminhar sobre a igualdade de gênero e no mundo do trabalho não existe equidade porque as mulheres seguem ganhando menos e exercem bem menos cargos de chefia do que homens. Principalmente os homens brancos.
Leia a íntegra da entrevista abaixo:
Qual a importância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do CNJ?
Valdete Souto Severo: O Protocolo tem uma importância simbólica sobretudo porque ele reflete na verdade um estudo feito por grupos que pesquisaram e passaram a conhecer em vários conceitos que são importantes para quem ainda não está familiarizado com a questão e propõe algumas técnicas e formas de raciocínio para a compreensão de casos concretos.
Então tem muita importância, mas eu digo que é mais simbólica do que prática porque na realidade não há uma obrigatoriedade de observância e sabemos que se trata de uma manifestação política de compromisso do CNJ, que acaba entrando em rota de colisão com decisões do próprio CNJ em questões que atingem mais, por exemplo, a população feminina negra.
Como você percebe a relação do teor simbólico do Protocolo com a prática do Judiciário?
Valdete: Se pensarmos na questão de como a lei do trabalho doméstico é aplicada ou analisada, ou mesmo, a terceirização, que tem um corte de raça e de gênero bastante forte, mesmo as decisões do Poder Judiciário de cúpula, que são as pessoas que estão no CNJ fazendo esses protocolos e já falam, inclusive, em criar um protocolo para julgamentos com perspectiva racial, esses protocolos na verdade colidem com a posição que as mesmas pessoas que incentivaram a sua escrita têm em relação, por exemplo, à matérias trabalhistas, que têm cortes de gênero e de raça bastante fortes. Isso não tira o mérito simbólico, mas mostra que eles são apenas um pequeno passo.
O Protocolo tem balizado realmente os julgamentos no país?
Valdete: Existem mulheres juristas fazendo o mapeamento que citam o Protocolo. No Rio Grande do Sul, por exemplo, eu percebo que alguns desembargadores a referir o Protocolo, o que é uma coisa positiva, mas não podemos dizer ainda – até porque temos o Protocolo de Gênero a pouco tempo –, que existe uma preocupação digamos institucional, inclusive de incentivo para que esse Protocolo seja considerado nas decisões.
No nosso Tribunal, têm sido feitas algumas iniciativas pela escola judicial nesse sentido. O que é muito positivo, mas está ainda muito no início para se falar que ele está efetivamente sendo considerado como uma baliza para os julgamentos.
Muitas violências de gênero têm sido denunciadas em audiências, muitas online. Continuam acontecendo?
Valdete: Sim, os casos de violência de gênero continuam acontecendo. Me parece que ao mesmo tempo em que existe essa iniciativa para a visibilização da questão de gênero e da questão racial, há uma contrapartida de uma reação a estas pautas através de discursos de ódio às mulheres e às pessoas negras, inclusive, disseminados nas redes sociais.
Há uma impressionante manutenção dos números de violência contra esses corpos e me parece que essas coisas estão articuladas porque há um movimento do sistema de justiça, mas esse movimento é do sistema de justiça de ponta, ou seja, que julga e que, portanto, trata de fatos já consumados, por isso que eu digo, como falei antes, que tem um caráter mais simbólico.
O que falta então?
Valdete: Para se ter uma redução dos casos de violência de gênero nos julgamentos, é necessário que no outro lado do sistema de justiça existam medidas de prevenção efetiva, que haja uma educação de qualidade desde cedo para uma boa compreensão dessas questões.
São necessárias também redes de apoio para as mulheres e, tudo isso, sabemos que tem um falimento em relação às estruturas de Estado.
As mulheres, os LGBTs e as trabalhadoras e os trabalhadores negros enfrentam muitos preconceitos no Judiciário?
Valdete: Enfrentam problemas de várias ordens porque temos ainda uma certa dificuldade nas unidades judiciárias, como por exemplo, os banheiros que são de homem e mulher separados, então as pessoas trans têm problemas com isso, porque muitas vezes elas encontram dificuldade para se inserir nessa lógica binária.
Há também o problema do assédio, aí, de novo, me parece que uma visão estrutural tira um pouco o ativismo em relação ao Protocolo porque a própria justiça premida de uma lógica de metas, que é uma lógica empresarial, de produção, de quantidade, de respostas judiciais, quer dizer, há uma preocupação muito menor com a prevenção ou com a solução efetiva dos conflitos do que com números.
Essa lógica empresarial está em todo o sistema?
Valdete: O Justiça em Números do CNJ, publicada anualmente, confirma o que afirmo. Temos, portanto, um sistema de justiça com um número de servidores que já não dão conta da demanda, e eu falo da Justiça do Trabalho, onde eu atuo, que é uma das mais aparelhadas, estruturadas. Se formos comparar com a Justiça Comum, por exemplo, o número de servidores em proporção ao número de processos é bastante inferior. Só que esses servidores estão premidos por uma lógica de metas e aí, isso acaba se traduzindo como assédio na prática.
Para mim, é uma questão que tem tudo a ver com a manutenção dessas discriminações de gênero e de raça, de idade, capacidade, porque quando criamos uma lógica de trabalho preocupada com a quantidade, coma produção, a tendência é que essas pessoas sejam atropeladas nas suas individualidades e quase sempre são os corpos mais dissidentes.
Como as mulheres, as pessoas negras e os LGBTs se organizam para enfrentar os problemas da postura machista e racista no âmbito do trabalho?
Valdete: Essa é uma resposta difícil porque não existe um único modo. Existem várias formas, uma forma bastante perceptível é se unirem em coletivos para dar visibilidade a essas questões.
O nosso tribunal, em Porto Alegre, tem um comitê de diversidade, tem um comitê de questão racial onde as pessoas são estimuladas. Campanhas são desenvolvidas contra o assédio, a se reconhecerem e se assumirem. Porque isso é uma coisa bastante real. A resistência e a mudança de comportamentos que causam dor, sofrimento, é uma mudança coletiva. Individualmente é muito difícil de acontecer.
Além disso, tem havido também uma preocupação em aumentar a capacitação com amis cursos, mais oportunidades de acesso a livros e conteúdo que tragam uma ase teórica para essas pessoas se sentirem mais confortáveis para entender que elas não são pessoas problemáticas e sim vivem numa estrutura social que não permite a diversidade, mas a questão, eu insisto, é que o machismo e o racismo estruturam o que chamamos de capitalismo.
Assim todas essas medidas são de algum modo paliativas porque elas não incidem sobre essa estrutura.
Como assim?
Valdete: O que eu quero dizer com isso é que tem uma maioria de juízes q1ue são homens brancos e se eu tenho uma lógica hierárquica do produção do trabalho, se eu tenho uma gestão empresarial de metas, se eu tenho uma terceirização dentro do sistema de justiça e, quase sempre os corpos terceirizados são na maioria mulheres negras, eu posso até ter toda essa iniciativa de algum modo, inclusive, perceber que há ganhos nessas iniciativas, como a do Protocolo, capacitação etc., mas a estrutura se mantém porque se realmente quiséssemos falar a sério em relação a construir medidas que reduzissem, por exemplo, os efeitos concretos, reais da violência de gênero, da violência racial, deveríamos falar de mudanças bem mais profundas.
Texto em português do Brasil