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Domingo, Setembro 1, 2024

O PS e a “Ética da Convicção”

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Convicção

Sejamos claros: está tudo a mudar com grande rapidez. Mas, por isso mesmo, é cada vez mais necessária uma “cartografia cognitiva” que desenhe fronteiras com rigor.

Entretanto, o que permanece bem definido é o terreno do radicalismo, à esquerda ou à direita. Por exemplo, o nacionalismo ou o integralismo religioso. E já nem falo da confiscação da política pelos chamados mercados e pelos seus gurus – as agências de rating. Ou seja, da emergência daquilo a que Wolfgang Streeck (no livro Tempo comprado. A crise adiada do capitalismo democrático, Lisboa, Actual, 2013) chamou a segunda “constituency” – a dos credores internacionais.

Para mim, é evidente que o centro-esquerda precisa de repensar com rigor analítico o seu próprio quadro global de referência. Mais até do que os conservadores de inspiração liberal ou de inspiração democrata-cristã.

Lógica casuística

Vem isto a propósito da recente iniciativa de tributar complementarmente (ao IMI) o património imobiliário. Uma espécie de penalização fiscal ou castigo dos que têm um pouco mais, aumentando duplamente a sua tributação: deixando de ser por imóvel para passar a ser pelo conjunto do património e passando de um milhão de euros por imóvel para 500 mil (limiar mínimo) pelo conjunto.

E sobretudo por isto estar a ser feito, mais uma vez, com uma lógica casuística. Lógica que já aflorou também nos 50 mil euros a comunicar ao fisco pelos bancos e na taxa sobre a exposição ambiental dos imóveis.

Qualquer dia, apetecerá dizer, como os italianos, “chi più ne ha più ne metta”. Na verdade, o país já está grávido de impostos. E o coito fiscal já quase não faz efeito. Se assim é, venham daí os “aprendizes de feiticeiro” e ponham taxas em tudo. Até já está disponível uma filosofia de algibeira que tudo justifica, a do “utilizador-pagador”.

Mas também a do não-utilizador-pagador: a dos que tendo uma segunda casa sem lá terem televisão pagam na mesma a taxa do maravilhoso audiovisual português das telenovelas, do crime e castigo em prime time e da publicidade em doses cavalares.

Bem sei que o PS já mandou dizer que o limiar não é aquele, mas outro muito superior. Sim, e deve dizer porquê. E é precisamente por isso que ponho a questão da fronteira (e me fixo na proposta do Bloco): o que diferencia a “ética da convicção” do PS da “ética da convicção” do Bloco de Esquerda e do PCP, sabendo nós que – para além das chamadas questões fracturantes – existe uma filosofia de fundo que inspira estas duas forças políticas e que se pode resumir na fórmula “os ricos que paguem a crise”?

Se dúvidas houvesse, as recentes declarações de Mariana Mortágua tornariam tudo claro (“perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”). Como é que isto se está a traduzir em “ética da responsabilidade” na práxis governativa é a outra questão que se segue.

Uma questão da fronteira

Ora, com o valor proposto, surge evidente a questão da fronteira. Para mim, com uma clareza que não deixa dúvidas. Quem alimenta as finanças públicas e quem são os seus principais beneficiários? Já se sabe que é a “middle class”, esse enorme centro que não pode fugir aos impostos e que constitui a principal fonte de receita fiscal, sendo também certo que, de um lado, estão aqueles – e são muitos, cerca de metade das famílias – que não pagam impostos (directos) por falta de rendimentos e, do outro, aqueles que não pagam o que deviam porque deslocalizam as sedes administrativas das suas empresas ou grupos, usam os buracos legais para fugir aos impostos ou obtêm legislação favorável devido ao seu poder. E é entre estas duas faixas que se situa a “classe média” pagadora.

Como sabemos, esta classe está sobrecarregada de impostos, directos e indirectos, de taxas e sobretaxas e de complementos solidários (veja-se a evolução das receitas em impostos e contribuições sociais entre 1995 e 2015: de 28.048 milhões de euros, em 1995, para 66.406 milhões de euros, em 2015, ou seja, quase o dobro – fonte “Público”, 18.09.16, p. 3, com base no INE e na DGO).

Sabemos também que nesta zona social se verifica uma grande amplitude de rendimentos, mas no interior de fronteiras razoáveis e bem determinadas. Este centro é, em boa verdade, o grande motor que movimenta a sociedade em todas as suas frentes fundamentais, do direito à medicina, da engenharia à investigação científica e ao ensino, da tecnologia à cultura e à criação artística, da pequena indústria ao pequeno comércio.

Zona social

Esta é, portanto, uma zona social a que a política deve prestar muita atenção, preocupando-se em identificar as suas identidades, as suas motivações, as suas capacidades e, já agora, os seus direitos. E a questão que se põe, ao confrontarmo-nos com o simbolismo desta medida em estudo, nos termos que são do conhecimento público, é esta: qual é a fronteira que a esquerda moderada estabelece para definir níveis de penalização fiscal, de “castigo”, em função dos rendimentos ou de “manifestação de fortuna”?

Ter uma casa de habitação do valor de 300 mil euros (por exemplo em Lisboa, onde trabalha) e outra casa (de família, por exemplo, no Porto, onde passa os fins-de-semana e as férias) à disposição no valor de 250 mil euros já deve ser motivo de castigo fiscal sobre 50 mil euros? Ponho intencionalmente de parte a questão de saber se o cálculo se refere ao valor comercial ou à imputação fiscal, porque se trata de uma reflexão sobre a determinação de uma fronteira simbólica entre modos diferentes de ver a vida e a sociedade.

De facto, trata-se de um problema de fronteira. A carga fiscal é pesada e a lógica do utilizador-pagador está disseminada. Um pesadelo. A isto viria juntar-se um castigo fiscal num limiar absolutamente inaceitável (no meu entendimento) que vai ter como consequência a desmotivação da classe média mais empreendedora, que arrisca, que investe, que inova, que trabalha para ter um pequeno conforto compensatório, numa palavra, da classe que se constitui como o verdadeiro motor da sociedade. E o peso simbólico da medida é, em muito, superior ao seu real significado financeiro.

O que subjaz a esta medida é uma visão do mundo que deve ser claramente percepcionada pelo cidadão no seu verdadeiro significado e alcance. Uns acolhê-la-ão. Outros, entre os quais me incluo, não. Mas o que deve ficar explícito é o seu real significado.
Se for por aqui o PS, sem se aperceber, corre o risco de deslizar para a ladainha e os cânticos de exaltação da santa irmandade solidária, abandonando uma matriz onde o valor da liberdade ocupa um lugar central! E, assim, passo a passo, o PS pode mesmo vir a esbater a sua identidade, deslizando, em certas matérias (por exemplo, de carácter financeiro), à direita e, noutras (por exemplo, em matéria fiscal), à esquerda, como consequência da assunção de uma lógica casuística na definição das suas posições.

Quadro de referência

Isto leva-me à conclusão de que o socialismo democrático precisa cada vez mais de definir um claro quadro de referência, a tal “cartografia cognitiva”, para que não perca a sua própria identidade e, no tempo, não acabe por perder a sua própria militância e o seu eleitorado.

Para ser ainda mais claro. Também o PS precisa – pelo menos no plano partidário e agora mais que nunca – de afirmar com vigor uma estruturada “ética da convicção”, uma “cartografia cognitiva” que constitua um claro quadro de referência que balize as suas posições para além de um “casuísmo” aleatório politicamente desgarrado e perigoso, sendo certo que, enquanto governo, estará sempre obrigado a uma “ética pública da responsabilidade” que deverá partilhar com os seus parceiros no Parlamento.

Parceiros que, de resto, não perdem oportunidades para exibir a sua própria “ética da convicção”. Defendi com argumentos esta solução política, mas, por isso mesmo, sinto-me à vontade para apontar as insuficiências e os perigos do caminho que o PS pode estar a percorrer, esquecendo-se de uma “ética da convicção” que seja âncora segura das suas posições políticas e dos seus compromissos.

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores e não reflectem necessariamente os pontos de vista da Redacção ou do Jornal.

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