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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Qual o sentido do dia da mulher?

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

Ouvi no radio uma enquete sobre se as mulheres gostam ou não de receber “feliz dia da mulher”. Achei curioso a ideia de que isso pode não ser uma coisa boa.Eu, particularmente, não ligo. Gosto quando amigos me felicitam, mas não sinto nenhuma alegria especial pela data. Em geral considero estas comemorações (não dos amigos ;)) falsas e demagógicas.

Não ignoro a profunda discriminação que as mulheres sofrem: trabalham mais, ganham menos, são vistas como procriadoras, e, contraditoriamente, também discriminadas quando tem filhos, são objetos sexuais, consideradas incapazes de tarefas que exigem força ou capacidade de gestão, são vítimas de violência física, letal e moral etc.

Ao contrário, penso que não atingimos a raiz desta situação trágica com a repetição anual de eventos inócuos, frases feitas, propagandas de TV, com jovens modelos “empoderadas” e mensagens cândidas cobertas de flores, borboletas e figuras bucólicas.

Quantas pessoas sabem que o dia 8 de março é o dia da mulher por causa de uma manifestação ocorrida em 1857, em que cento e vinte e nove operárias da fábrica de tecidos Cotton, em Nova Iorque, paralisaram os trabalhos pelo direito a uma jornada de 10 horas? Que, acuadas pela polícia, as operárias se refugiaram nas dependências da fábrica e foram trancadas pelos patrões e pela polícia que, depois de trancar atearam fogo à fábrica, matando carbonizadas todas as tecelãs? Sabem que, sessenta anos depois, em março de 1917, tecelãs russas, utilizando o simbolismo daquela data, entraram em greve contra o czar Nicolau II e contra a participação do país na Primeira Guerra Mundial e que a força daquelas mulheres precipitou movimentos que marcaram o início da Revolução Socialista na Rússia?

Lembrar a cada ano do sacrifício das trabalhadoras da fábrica Cotton e da luta das tecelãs russas em 1917 nos traz autoestima, principalmente por serem mulheres do povo, trabalhadoras das fábricas. Mas quantos, de fato, associam o dia da mulher àqueles acontecimentos? E qual efeito isso tem termos de equidade e respeitabilidade entre gêneros?

Ouço e vejo muita bobagem não só no dia 8 de março, mas com relação a “luta das mulheres” em geral. Uma mistura de frases de efeitos sobre a vitimização da mulher na sociedade, mensagens românticas nas quais mulheres parecem elfos em jardins encantados, além de eventos sociais pintados de rosa, a cor da doçura, a cor do logo da Barbie (será que rosa era a cor de Olga Benário?). Nada contra a cor. Sou fã da pantera cor-de-rosa e o filme A Garota de Rosa Choque marcou minha adolescência, o ponto é: precisamos ser sempre cor-de-rosa?

Mas não são apenas mensagens fugazes que se desviaram do foco. Ativistas pretensamente radicais fazem, muitas vezes, muito barulho por nada (não qualquer ativista, me refiro aos “pretensiosos” e “radicais”). Por exemplo, no carnaval deste ano algumas mulheres em São Paulo desfilaram com seios nus defendendo que aquela era uma atitude “política” e “feminista”. Foi triste ver uma foto no jornal com uma mulher com seios de fora no meio de uma multidão, assim como acho triste e inoportuno aquelas jovens (sempre belas e atléticas, nunca fora de forma) europeias que protestam com seios de fora e são carregadas seminuas por policiais homens. O que ganhamos com isso? Por que para os homens “mostrar o corpo” não é cogitado como forma de protesto?

E há também casos de puro oportunismo na deturpação do tema, como: a deputada Cristiane Brasil afirmar que não tomou posse como ministra do trabalho por que foi “vítima de machismo”. Ora, só porque ela é mulher ela pode então fazer um vídeo ridículo em tom de ameaça, sambando na cara do decoro parlamentar, não pagar direitos trabalhistas a funcionários, se envolver com o tráfico de drogas e ainda assumir um ministério que dispõe sobre a vida dos trabalhadores brasileiros? Acho que se ela tivesse, apesar de tudo, tomado posse, isso sim seria machismo. Machismo e paternalismo, literalmente.

Tenho a sensação de que o registro daquelas lutas por uma jornada de trabalho razoável e por comida, problemas que para muitas e muitos ainda são reais, transformou-se em um discurso distorcido, assimilado pelo status quo, que mais divide do que soma.

Percebo que entre conceitos reciclados sobre o feminismo, como a moda do empoderamento, e a vida real da classe operária há uma grande distância. Isso porque em meio à penúria social, salários baixíssimos, custo de vida alto, aluguel, escola, alimentação, trabalho massacrante, tais conceitos não prosperam.

Penso, desta forma, que para resgatar seu sentido, a luta da mulher deve estar inserida em uma luta maior. Inserida na luta social contra a pobreza, por uma boa educação para todos, pelo acesso a um bom sistema de saúde, por empregos dignos, bem remunerados, pelo compartilhamento do cuidado com os filhos, pelo acesso e incentivo à arte e à cultura, para assim promover a almejada elevação espiritual e emancipação humana que naturalmente colocarão mulheres e homens no mesmo patamar.

Texto original em português do Brasil

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