Sobre o Caule de Água, de Maria Marta Nardi, publicado pela editora Leonella, é uma coleção de 24 haicais, gênero poético japonês formado por apenas três versos que foi popularizado no Brasil por autores como Alice Ruiz e Paulo Leminski. Nessa forma concisa, que valoriza a simplicidade vocabular, a delicadeza e o retrato das imagens da natureza, a poeta obtém notáveis resultados, pelo domínio dos recursos técnicos da poesia, expressão emocional e singularidade do olhar.
Marta, que nasceu em Marília (SP) e reside hoje em Campo Grande (MS), onde trabalha como professora, apresenta ao leitor pequenas peças de alta beleza e intensidade lírica, como por exemplo este terceto, que abre o seu livro:
“chuva de primavera
até borboletas
viram pétalas”
Em que o primeiro verso é um kigo, ou signo da estação do ano, utilizado na poesia tradicional japonesa para indicar o momento em que o poema foi escrito e a relação íntima entre o ser humano, as estações do ano e a natureza. No poema de Marta Nardi, notamos ainda a sutil metamorfose das borboletas que viram pétalas, como se fosse uma cena do filme Sonhos, de Akira Kurosawa.
Em outras composições, que revelam um delicado humor, lemos:
“quem consegue dormir
com a lua de outono
rondando a janela?”
Peça que dialoga com autores como Bashô e Li Tai Po, que também converteram a lua em protagonista de ações cotidianas, e ainda:
“depois da chuva
um louva-a–deus
ainda reza”,
Poema que nos faz pensar em Kobayashi Issa, haicaísta que cantou os animais, os insetos, as crianças e as plantas.
A observação de cenas inusitadas da natureza é uma especialidade de Marta, cujo olhar, como se fosse uma câmera cinematográfica, consegue captar:
“uma folha (que) é estreita
para um exército
de formigas”
E
“um caracol (que) se enrola
sobre as folhas
e o dia envelhece”.
A poeta registra ainda lembranças familiares, como nestes intensos tercetos:
“casa de avó
um cuco grita
no canto da parede”
E
“meu irmão morto
carneiros negros
no céu da tarde”
E momentos de angústia, solidão e tristeza, em versos como:
“sozinha noite adentro
bate um frio
ao menor vento”.
A sutileza da poeta, que sabe captar o raro e o inusitado, nos surpreende pelo desenho de pequenas cenas que poderiam ser comparadas à pintura sumiê, em que as imagens são deliberadamente imprecisas, incompletas ou borradas, conforme a ideia taoísta da “perfeição do imperfeito”, expressa por autores como Chuang Tzu. Notamos a presença desse conceito filosófico em composições como:
“noite em branco
cantam grilos
em meus ouvidos”
E
“início das chuvas
perto da estação
vagalumes acendem as luzes”.
A simplicidade, a linguagem direta, que revela apenas o necessário, obedecendo a um princípio de alta economia vocabular, dá o tom em:
“noite de inverno
roxa de frio
a violeta”
E
“noite alta
cai do céu
uma estrela”.
Sobre o Caule de Água, de Maria Marta Nardi, é uma síntese notável da forma poética oriental com a sensibilidade, a memória, o humor e a veia inventiva de uma poeta que merece ser lida com atenção.
Sobre o Caule de Água
de Maria Marta Nardi, publicado pela editora Leonella
por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG | Texto original em português do Brasil
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