Já aqui me referi a La Seconde Guerre Mondiale de Raymond Cartier publicado uma vintena de anos depois da guerra como um bom instrumento de consulta sobre as linhas gerais de desenvolvimento do conflito e sobre o estado da opinião pública nos países participantes. O I Volume(i) refere-se assim à opinião pública inglesa:
Dans les classes dirigeantes, les infiltrations nazies, les défaillances du patriotisme, sont aussi graves qu’ en France. La Cliveden Set de lady Astor est pacifiste par idéologie de gauche, mais le Daily Mail de lord Rothermere à écrit, il n’ y a pas si longtemps que ‘les solides jeunes nazis d’ Allemagne sont rempart contre le communisme’ L´Angleterre s ´étant ultérieurement réunifiée sous les bombes, on éprouve aujourd´hui l’ ímpression que le défaitisme a été un monopole français. L´ histoire impartiale doit dire qu´il n´en fut rien.
À Viscondessa Nancy Astor, primeira mulher a ter um lugar no Parlamento, e ao seu grupo de gente de alta sociedade – a Cliveden Set – chegaram a ser atribuídas simpatias nazis ou pelo menos intenções de apaziguamento de Hitler.
Em termos mais amplos Raymond Cartier sugere que na aristocracia, no topo da banca, nos grandes negócios e na Igreja de Inglaterra terá havido sempre, para além dos fascistas declarados de Sir Oswald Mosley, gente que se as coisas corressem mal estaria disposta a favorecer uma mudança de governo e uma paz de compromisso com Hitler. Eduardo VIII, que abdicara tornando-se duque de Windsor, terá evidenciado também simpatias nesse sentido.
Nesta situação complexa e perigosa, e tendo em conta o em certa medida revivalismo a que se vem assistindo em alguns países parece-me importante assinalar o gesto de dois autores de romances policiais, portante autores menores e habitualmente estranhos a temáticas mais complexas que em vésperas da Segunda Guerra Mundial escreveram livros claramente denunciam a existência de simpatias nazis nas elites e esboços ficcionados de conspiração para controlo do poder.
O primeiro é Nicholas Blake cujo The Smiler with the Knife foi publicado no Reino Unido em 1939, portanto no ano em que este teve de declarar guerra à Alemanha, em resposta à invasão da Polónia e depois de um extenso período de Appeasement que permitiu a anexação (Anschluss) da Áustria, a ocupação da região dos Sudetas, na sequência dos Acordos de Munique, e a anexação das restantes partes da Checoslováquia onde se constitui então um protectorado alemão na Boémia-Morávia e um estado clerical-fascista na Eslováquia. Na altura em que Nicholas Blake escreve este livro, salvo erro o quinto dos seus cerca de vinte livros policiais, o seu herói, o detective privado Nigel Strangeways, está já casado com uma Georgia Cavendish, exploradora, que conheceu numa das histórias anteriores, sendo a então Georgia Strangeways a principal protagonista do livro, que só veio a ter edição portuguesa em 1973, na coleção Vampiro da então Editora Livros do Brasil, sem dados biográficos do autor e sem contextualização, como era habitual na época em Portugal.
Alguns dos livros policiais saídos na antiga colecção Vampiro estão a ser reeditados pela Porto Editora, que absorveu a Livros do Brasil, numa Colecção Vampiro / Nova Série, e, mais cuidada, esta insere biografias dos autores, ficando-se a saber que(iii) Nicholas Blake:
…é o pseudónimo do poeta Cecil Day-Lewis. Nascido na Irlanda em 1904(iv), Day-Lewis cresceu em Londres e licenciou-se pela Universidade de Oxford em 1927, tendo publicado em 1925 a sua primeira colectânea de poemas. De forma conseguir um rendimento suplementar àquele que lhe advinha da sua obra lírica, trabalhou como professor, crítico literário e editor , e, em 1935, lançou, com o pseudónimo Nicholas Blake, a sua primeira história policial…
O segundo autor a que pretendo referir-me é Leslie Charteris, o criador da muito mais conhecida figura de Simon Templar – o Santo, interpretada pelo actor Roger Moore numa série televisiva que, na altura em que os livros do “Santo” foram divulgados em Portugal pela Livros do Brasil, emprestou a sua imagem às capas de muitos daqueles.
Ao compor este apontamento fiquei a saber que Leslie Charteris, nascido em 1907 em Singapura, era filho de um chinês e de uma inglesa. Tendo optado desde muito cedo por viver da escrita, foi autor de muitos livros e contos policiais.
A ascensão do fascismo não o deixou indiferente.
The Saint plays with fire, publicado no Reino Unido em 1938, e editado em Portugal na Colecção Vampiro em 1949(v) começa com um programa radiofónico de um partido fascista francês, continua com incidentes em Inglaterra que mostram as cumplicidades existentes entre as elites inglesas, tendo o desenlace lugar em França.
A guerra tem início na Europa logo em 1939 mas em 1940 Leslie Charteris publica The Saint in Miami(vi) incidindo desta vez nas cumplicidades das elites americanas com os nazis e nos perigos da guerra submarina para a navegação americana nas suas costas do Atlântico que aliás se materializaram em alguns incidentes ainda antes da declaração de guerra da Alemanha aos Estados Unidos que se seguiu ao ataque japonês a Pearl Harbour em Dezembro de 1941.
Leslie Charteris, que se casou com uma actriz americana, chegou a naturalizar-se americano em 1946 mas anos depois regressou – com a mulher – ao Reino Unido(vii).
Vale a pena completar estas observações com uma reacção inglesa ao advento de Mussolini.
Logo em 1928 o inglês Edward Phillips Oppenheim (1966-1946), que escreveu na ordem de 150 romances com especial relevo para os que tratavam o relacionamento entre os vários países no período posterior à Primeira, escreveu um romance – Matorni ‘ s Vineyard – (viii).
A história é simples e põe em confronto um António Matorni, chefe dos fascistas que recentemente instauraram uma ditadura em Itália, fazem o que querem da lei, e recorrem à repressão mais brutal, incluindo a utilização de “mensageiros da morte” e a realização de execuções extra-judiciais – e alguns elementos das autoridades britânicas e francesas que sabem que o novo regime italiano procurará um acordo com a Alemanha para retomar à França as povoações da costa sul de França que já tinham sido italianas.
Não há dúvidas que Matorni – que tem muitos traços de Mussolini – como ser impiedoso, e capaz de atrair senhoras da “alta”, não é flor que se cheire, e que os seus fascistas não são democratas, aliás a solução do romance é pouco verosímil mas percebe-se que o objectivo do autor é construir um quadro idílico em que a Europa e a oposição interna reconhecem o valor de Matorni, que se reconcilia com esta última com a promessa de não fazer a guerra a França, aliás em apoio desta dá-se no livro uma demonstração naval combinada anglo – americana. Em 1940 a Itália acabará por declarar guerra à França já rendida à Alemanha (e à Inglaterra), sem ganhar territórios nem obter a entrega da frota francesa e acaba por ser derrotada militarmente em quase todos os teatros de guerra em que se aventura. O fascismo saiu derrotado e desprestigiado durante 80 anos. Até há alguns dias.
Oppenheim escreveu também alguns romances de acção e espionagem onde figuram tratados de desarmamento e pactos da paz, alguns dos quais inspirados em propostas e iniciativas dos anos 1920, hoje esquecidas. Não sei se Up the ladder of gold, publicado em 1931 e editado apenas em 1951 na Colecção Xis da Editorial Minerva com o título Senhor do Mundo está disponível no mercado. Se estiver julgo que muitos leitores poderão tirar proveito da obra.
Notas
(i) Larousse, Paris-Match, p. 57.
(ii) No mesmo sentido, o mesmo I Volume, p. 153.
(iii) Transcrevo a biografia inserida no livro The Beast Must Die, 1938 (A Fera tem de Morrer), publicada na Vampiro – Nova Série. A Internet contém outros elementos biográficos sobre o autor, que faleceu em 1972.
(iv) O autor nasceu no Leinster.
(v) Com o título “O Santo Brinca com o Fogo”. A tradução brasileira teve de ser revista para a edição portuguesa e a impressão foi feita nas Oficinas Gráficas da Rádio Renascença (!), a Editora Livros do Brasil estava ainda nos seus primeiros passos.
(vi) “O Santo em Miami” foi apenas publicado nos Livros do Brasil em 1965.
(vii) Faleceu em 1993.
(viii) Publicado em 1951 na Colecção Xis da Editorial Minerva com o título Agente Z-33.