Dicionário Machado de Assis, escrito pelo saudoso amigo José Carlos Ruy, é um trabalho espetacular, ainda inédito, mas prestes a ser publicado pela Editora Anita Garibaldi.
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) criou pelo menos três personagens chamados André. Um deles, o coronel André Borges, ex-deputado e “ex-quase ministro”, aparece no conto Valério, de 1874. Segundo o narrador, ele “faz parte dessa classe indefinível de homens que estão entre a primavera e o outono”.
Apaixonado por política, escreve um livro de oposição ao governo. “A política começa, para ele, no subdelegado e acaba no coronel – a Guarda Nacional e a polícia são para ele toda a opinião pública; tem mais respeito a um juiz municipal que à lei, porquanto a lei é o tema e o juiz municipal, a aplicação”.
Um outro André machadiano digno de nota é personagem do conto To be or not to be, de 1876. Seu nome completo é André Soares. Machado o apresenta como “um rapaz de 27 anos de idade, nem magro nem gordo, alto nem baixo; tem, na alma como no corpo, uma escassa e honrada mediania. É um desses homens que não aumentam a humanidade ao nascer nem a diminuem ao morrer”.
Nunca li esses contos de Machado, mas conheci seus Andrés – meus xarás – devido ao Dicionário Machado de Assis, escrito pelo saudoso amigo José Carlos Ruy (1950-2021). É um trabalho espetacular, ainda inédito, mas prestes a ser publicado pela Editora Anita Garibaldi.
O maior dos escritores brasileiros deu nome a 1.060 de seus personagens, sendo 372 mulheres, conforme o livro de Ruy. Ao lado dessas “figuras humanas nomeadas”, há “mais ou menos 350 outros ‘anônimos’, a imensa maioria dos quais escravos, lacaios, cocheiros, empregados humildes de todo tipo, que não recebem nome nem têm protagonismo na narrativa e só são citados”. O Dicionário Machado de Assis apresenta cada um desses tipos.
A live
Ruy morreu em 2 de fevereiro de 2021. Eu descobri seu Dicionário por acaso, 50 dias antes, em 14 de dezembro de 2020, por conta de uma live que eu tinha organizado para o Vermelho. A proposta “oficial” era fazer uma retrospectiva cultural do Brasil naquele primeiro ano da pandemia de Covid-19. Por isso, além do Ruy, convidei outros dois amigos jornalistas, Celso Marconi e Urariano Mota.
Havia uma motivação extra na escolha dos entrevistados. Em 2020, eu fiz 40 anos, o Ruy e o Urariano completaram 70, enquanto o Celso chegou aos 90. Devido à quarentena, nenhum de nós comemorou à altura. Informalmente, o programa seria uma espécie de confraternização entre camaradas – tanto que nos bastidores, antes de entrar no ar, abri uma garrafa do vinho.
O clima realmente estava leve e descontraído, a não ser por um contratempo: o Ruy – que era um cara mais adaptado ao mundo analógico do que ao digital – não conseguia acessar a plataforma de videoconferência. Eu tentava ajudá-lo a distância; e a Carolina Maria Ruy, a Carolzinha, filha dele e minha amiga, também tentou socorrê-lo. Mas as adversidades técnicas venceram – a live começou e terminou sem um dos entrevistados.
Ainda assim, Ruy assistiu integralmente à live e me mandou pitacos pelo WhatsApp. Foi numa dessas mensagens que ele citou o projeto sobre Machado de Assis, sem chamá-lo ainda de “dicionário”. Após a transmissão, telefonei para Ruy, que detalhou a proposta do livro, já praticamente pronto.
Xadrez
Eu estava numa fase de redescoberta do xadrez e disse para Ruy que Machado, mais do que um grande enxadrista, foi um excepcional divulgador do jogo. “Tudo pode ser, contanto que me salvem o xadrez”, brincou o escritor numa crônica. No primeiro torneio de xadrez disputado no Brasil, em 1880, Machado ficou na mais do que honrosa terceira colocação.
O Ruy, incrivelmente preciso, disse que Machado citava o xadrez em dois romances – o que fui comprovar ao ter acesso ao Dicionário. “Das qualidades necessárias ao xadrez, Iaiá possuía as duas essenciais: olho de guia e paciência beneditina; qualidades preciosas na vida, que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas”, escreve o autor em Iaiá Garcia, de 1878.
Vinte e seis anos depois, em Esaú e Jacó, Machado volta a associar vida e xadrez. “Distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão”, diz o escritor. “Há ainda a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo.”
O mundo vai melhor com uma novidade do porte do Dicionário Machado de Assis, que tem apresentação de Urariano Mota e prefácio de Renato Rabelo, ambos escritos ainda em 2021, pouco tempo após a morte do Ruy. Urariano descreve o livro como “uma dádiva, ou uma bênção, como o chamariam os evangélicos brasileiros”. Quando Ruy encontra Machado, só temos a agradecer.
por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil
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