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Sábado, Dezembro 21, 2024

Quando Natália Correia escreveu sobre a greve académica de 1907

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Comemorando-se este ano o centenário do nascimento de Natália Correia chamou-me a atenção, quando recebi uma circular alusiva de um alfarrabista, a publicação A Questão Académica de 1907, que prontamente encomendei, e que se encontra classificada como ensaio no texto que a Wikipedia dedica à autora.

Essencialmente descritivo, o texto, alimentado por transcrições auxiliadas por notas de rodapé, de sucessivas deliberações, artigos de opinião publicados, e relatos de intervenções parlamentares, é de fácil leitura:

Reprovação por unanimidade em 1907 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra(i) em provas para o grau de doutor de José Eugénio Dias Ferreira (já anteriormente aprovado como licenciado)(ii) por um júri que incluía o Reitor e que terá premeditado a reprovação, manifestação dos estudantes até casa do reprovado, greve às aulas de Direito recebendo-se os lentes com pateada com perda de ano por parte de muitos estudantes já “tapados”, exigência de criação de Faculdades de Direito em Lisboa e no Porto, exigência de sindicância ao acto de onde resultara a reprovação, marcando-se novas provas, decreto de encerramento da Universidade até o Conselho de Decanos, ao abrigo do Foro Académico, se pronunciar sobre a autoria dos supostos desacatos, vinda de 400 estudantes a Lisboa, realização de greves de solidariedade em outras escolas superiores, debates na Câmara dos Deputados e na Câmara dos Pares em que o Partido Republicano sustenta não estar na origem da contestação, entrada da polícia na Universidade, pedido de demissão do Professor Bernardino Machado, em protesto, expulsão de 7 estudantes em resultado da deliberação do Conselho de Decanos, recusa da generalidade dos outros estudantes em requerer exames se os 7 não fossem reintegrados, mobilização, das famílias para obter uma composição do litígio, que não impede que um conjunto de estudantes (os intransigentes que segundo este livro terão sido 107) de deixar queimar todas as datas sucessivamente fixadas para requerer exames, e finalmente, com envolvimento do Rei D. Carlos comutação das expulsões e adopção de medidas que permitiam que nenhum dos estudantes viesse a perder o ano.

Nunca vi qualquer referência à génese deste livro de Natália Correia, a qual não terá feito outras incursões no domínio da História. Mas a data de publicação – 1962 – ano em que outra “crise académica” ganha força, e a circunstância de se tratar de uma edição conjunta da Seara Nova e da Editorial Minotauro, esta última liderada por um açoriano como Natália Correia – Bruno da Ponte (que veria a sua Editorial encerrada definitivamente em Dezembro de 1966 por ter editado um volume com implicações prejudiciais para a defesa nacional(iii)) – e de vir incluído na edição um prefácio de Mário Braga, escritor, jornalista e sobretudo tradutor, na altura editor da Vértice, levam-me a interrogar-me se a corajosa antifascista Natália Correia não terá aqui assumido a autoria de um trabalho na origem colectivo. Talvez a questão já tenha sido debatida noutros lugares, mas não encontrei referências.

A greve académica de 1907 já eu a tinha seguido na excelente biografia de Jorge Pais de Sousa Bissaya Barreto: Ordem e Progresso originalmente publicada em 1999 de que dei conta aqui em o Partido do Centro, sendo então Fernando Bissaia Barreto, posteriormente deputado constituinte da corrente de António José de Almeida, entretanto ligado pessoalmente com Salazar, dirigente da União Liberal Republicana de Cunha Leal, dirigente na União Nacional de Salazar, um intransigente que não renega o seu passado e que ainda em 1961 evocou que nessa altura cumprira os seus compromissos.

O leitor que queira procurar na Internet referências à greve académica de 1907 encontrará um bom texto na Wikipedia que, note-se, não inclui na Bibliografia a publicação de Natália Correia, bem como textos de outros autores, entre os quais um artigo bem estruturado de Maria Neves Leal Gonçalves na Revista Lusófona de Educação.

Outro livro que muita nos conta sobre a greve, seus antecedentes e evoluções posteriores, é de Alberto Xavier, um dos 7 expulsos de 1907 cuja síntese biográfica na Wikipedia nos leva a crer tratar-se de mais um estudante radical que veio a acabar como colaborador de Salazar.

A transição da República para o Estado Novo, não diminuiu a sua intervenção junto do Poder, visto que se tornou um dos colaboradores de António de Oliveira Salazar, quando este geriu a pasta do Ministério das Finanças.”

Por José Artur Leitão Bárcia – Arquivo Municipal de Lisboa, Domínio público

Não será bem assim e o seu livro “História da Greve Académica de 1907”, aprofunda acontecimentos anteriores e posteriores a 1907, numa crítica bastante dura, quanto a estes últimos, da actuação do chefe do Governo, João Franco, e até da do rei D. Carlos. Alberto Xavier, que se dá por muito pouco politizado no início da contestação, veio a tomar conhecimento de que a lista de estudantes a punir havia sido definida por João Franco e transmitida à Universidade, e faz as melhores referências como professores a Marnoco e Sousa que teve de actuar como promotor, e a José Alberto dos Reis(iv). É durante o conflito que João Franco passa pela segunda vez a governar em ditadura, com o apoio de D. Carlos, e em termos gerais se envolve numa escalada repressiva a que o regicídio põe fim(v). Alberto Xavier também considera que D. Carlos apoiou João Franco porque queria governar através dele.

Tendo tido a experiência de ser um dos 7 expulsos, Alberto Xavier vinca a sua gratidão aos 160 intransigentes, refere os percursos profissionais e políticos de muitos dos seus colegas, incluindo Alberto Pimenta e o futuramente auto designado “fascista” Trindade Coelho, mas destacando entre todos Aureliano de Mira Fernandes cuja fotografia insere em lugar de destaque no livro e que, refere, nunca se envolveu em actividades políticas. Um verdadeiro retrato de uma geração. De si próprio destaca este reconstituinte sobretudo a admiração por Álvaro de Castro do qual foi chefe de gabinete quando este chefiou o Governo em 1924. Falecido Álvaro de Castro em 1928, parece lógico que Salazar – um admirador de João Franco – o tenha aproveitado nas Finanças e como Juiz do Tribunal de Contas.

Curioso é que tenha sido o crítico ano de 1962 a assistir à publicação deste elogio do sobressalto estudantil de 1907, num livro invulgar, através da Coimbra Editora, a editora de Salazar.

Os estudantes de Coimbra não conseguiram a reivindicada criação das novas Faculdades de Lisboa e do Porto: a primeira, criada pela República, seria extinta pela Ditadura Nacional em 1928, antes de Salazar entrar para o Governo, e restabelecida meses depois com a assinatura deste, num dos compromissos que foram viabilizando a convergência das forças que vieram a aceitar o Estado Novo. Recordo a clarificação que fiz a propósito deste episódio: 1928: quando Salazar (não) extinguiu a Faculdade de Direito de Lisboa. Quanto à Faculdade de Direito da Universidade do Porto viria a ser criada muito tardiamente, já em democracia. As provas não foram mandadas repetir, o candidato reprovado submeter-se-ia a novas provas anos depois e foi aprovado.

Pelo caminho ficou um Reitor, e acabaram por ficar uma “ditadura comissarial” e o rei que a tinha viabilizado. A Monarquia cairia dois anos depois, numa insurreição armada.

O mundo político e académico era na altura pequenino. Um filho de João Franco foi um dos estudantes grevistas. O candidato reprovado, José Eugénio Dias Ferreira, era filho de um antigo chefe do Governo, José Dias Ferreira, que havia tomado também algumas medidas autoritários(vi). Depois do seu doutoramento viria a ser Professor do Instituto Superior do Comércio e depois do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. A economista emérita Manuela Ferreira Leite, que ficou com a fama de querer suspender a democracia por seis meses (mas não exprimiu tal desejo) é sua neta e bisneta do primeiro.

Hoje em dia tudo está bem, a Universidade de Coimbra já não reprova candidatos a doutores por unanimidade e os estudantes não têm de ter receio da polícia. Certo ou errado?

Errado!

Há alguns anos uma candidata a doutora em História de Arte, licenciada tanto em Engenharia Civil como em Arquitectura e com mestrado em História de Arte foi reprovada por unanimidade por um júri incluindo professores de várias instituições e o seu próprio orientador. Todavia apresentara um trabalho muito bem construído, que tinha o defeito de pôr em questão opiniões já expendidas por alguns membros do júri.

Há alguns dias uma estudante que mudou de passeio para filmar uma concentração ligada à luta contra as alterações climáticas, foi detida pela PSP, levada a Tribunal pelo Ministério Público e condenada a pena de multa.

 

Notas

(i) Acedido em 30-9-2023.

(ii) Na altura o estudante de Direito “formava-se” para exercer profissionalmente como bacharel.

(iii) Teatro de Sttau Monteiro. Bruno da Ponte faleceria em Dezembro de 2018.

(iv) Contudo Alberto Xavier nunca perdoou a João Franco os termos em que apareceu referenciado no acórdão do Conselho de Decanos: “Ao arguido António Maria Eurico de Alberto Xavier eram assacadas as seguintes infracções; tomara parte nas manifestações, em especial naquela que visara o Dr. Pedro Martins, sendo também surpreendido ‘a fazer ruído com fortes assobios para o que metia os dedos na boca como é de uso em gente de baixa condição.’”.

(v) Ditadura na monarquia constitucional corresponde a uma situação em que o executivo passa, com o apoio do rei, a governar por decretos com força de lei prescindindo da convocação do parlamento, na expectativa de quecoi acabem por ser ratificados por este, eventualmente após eleições.

(vi) Filho natural, segundo se precisa num dos textos consultados, sendo a mãe uma Viscondessa Eugénia.

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