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Sábado, Novembro 16, 2024

Quando o JN resolveu fazer publicidade da filantropia

Os mais ricos tentam apresentar-se como promotores de “obras sociais” – mas comemoram ampliação de mecanismo semi-secreto, que lhes garante sonegar em massa e impunemente. Bolsonaro participa da farra – denunciada até por Moro

Em meio ao alastramento da covid-19, dois fatos – um de sentido oposto ao outro – expuseram, esta semana, a alma dividida do 0,1% mais rico no Brasil. Na terça-feira (14/4), começou de forma coordenada uma grande campanha na mídia para exaltar as supostas “obras sociais” das corporações e famílias bilionárias. O momento de luxo foi, é claro, o Jornal Nacional, com sua audiência incomparável. Naquela noite, ao menos quinze longos minutos foram dedicados às “boas ações das empresas”. O primeiro lugar no pódio — oh, surpresa! – coube o Banco Itaú e a família Setúbal, que garganteiam ter ofertado R$ 1 bilhão à luta contra a pandemia. O montante foi confiado, é claro, ao Hospital Sírio e Libanês, um dos mais elitistas de São Paulo… Mas ao longo do jornal sobraram homenagens também para os recém-chegados à nata de “beneméritos”. Na categoria, destacou-se o iFood, que foge de toda responsabilidade legal por seus entregadores, mas teria destinado R$ 7 milhões para… “ampará-los”!

O outro fato, muito menos difundido mas imensamente mais relevante, veio cerca de 24 horas antes. Em 13/4, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Medida Provisória 899-2019. Proposta por ele próprio em outubro de 2019, ela tramitou no Congresso sob silêncio da mídia e sem jamais ser debatida com a sociedade. Estabelece uma “novo Refis”– mais uma das inúmeras rodadas de renegociação da dívida tributária das grandes empresas, invariavelmente “recompostas”. Contém, além disso, um dispositivo inédito – que não fazia parte da proposta inicial de Bolsonaro mas foi aceito alegremente pelo capitão. Um artigo, ao qual o ministro Sérgio Moro resistiu em vão, altera (para muito pior) a composição do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Criado há cerca de cem anos, este órgão da Receita Federal é quase ignorado pela esmagadora maioria dos brasileiros. Há razões para isso. Trata-se de um tribunal semi-secreto, no qual são perdoadas, ou proteladas a perder de vista, as dívidas fiscais dos grandes grupos econômicos e famílias ricas do Brasil.

Uma pequena brecha sobre o CARF, aliás, foi aberta na mídia a partir de março de 2015 – e logo se fechou. Por alguns meses, uma operação deflagrada pela Polícia Federal, e denominada Zelotes, revelou que grandes bancos e empresas compravam votos no conselho, para obter decisões favoráveis a seus interesses – e contrárias ao Estado brasileiro. Mas rapidamente, como tornou-se comum no Brasil, o assunto ganhou status de escândalo – garantia de que renderá manchetes por algum tempo, mas nada de efetivo será alterado.

No ano passado, porém, algo mudou. O consultor fiscal Ricardo Fagundes da Silveira fez, pela primeira vez, um estudo abrangente sobre as decisões do órgão. O trabalho tem rigor acadêmico. Ricardo foi orientado pelo rigoroso (porém valente) Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). As conclusões a que chegou são espantosas, pelo que revelam sobre o sistema tributário brasileiro[1]. Entre 2013 e 2017 – foram “julgadas” pelo CARF autuações fiscais cujo valor atingiu R$ 727 bilhões. É como se, a cada 60 horas – noite e dia, ao longo de cinco anos, sem parar nem nos fins de semana e feriados – as políticas públicas brasileiras ganhassem ou perdessem um valor equivalente à “caridade” do Banco Itaú, que mereceu holofotes de 15 minutos de Jornal Nacional.

Quais foram os resultados destas “disputas”? O trabalho de Ricardo Fagundes é preciso e eloquente. Eis as principais conclusões:

  • A disputa média dura 9 meses e 16 dias. Ou seja, as grandes empresas e bancos entram no CARF sabendo que poderão protelar por este período o pagamento de impostos não pagos – e cobrados em autuações de audites da Receita Federal.
  • Porém, mesmo após transcorrido este longo período, apenas 3,74% das dívidas tributárias originais são efetivamente pagas à União. Em outras palavras, o CARF permite que os maiores grupos econômicos do país deixem de pagar 96,24% das autuações que recebem, por sonegação de impostos.
  • Quando se observa o quadro com lupa – ou seja, discriminando por valor do débito fiscal, o caráter de classe o Conselho fica ainda mais nítido. Quanto maior é a autuação (ou seja, a provável sonegação), mais chances o sonegador tem… de ganhar! Os pequenos devedores da Receita normalmente perdem as disputas (são derrotados em 80% das decisões que envolvem valores de até R$ 5 mil). Mas o gráfico abaixo revela que… o CARF protege exatamente quem deve mais!

Quais as razões para tamanho elitismo? Ricardo Fagundes investiga, em seu trabalho, aspectos históricos e de comparação internacional. O CARF é uma estranha jabuticaba. Em dezenas de países do mundo há conselhos administrativos semelhantes. São uma garantia dos cidadãos. É natural que, envolvidos com enorme volume de trabalho, os auditores fiscais possam enganar-se – em interpretações de leis e em cálculos de valores, por exemplo. É muito democrático que estes cidadãos possam recorrer a instâncias internas (“administrativas”) das respectivas Receitas para corrigir estes erros.

Mas em nenhum outro país entre as dezenas de nações examinadas por Ricardo, a composição de tais conselhos é semelhantes à brasileira. Aqui, quem dá as cartas são… as confederações empresariais. Elas assumem, sem que ninguém lhes tenha conferido, o papel de “representantes da sociedade”. A distorção ajuda a explicar o viés ideológico que marca qualquer rejeição ao aumento de tributos no Brasil. Os grandes empresários arrogam-se a condição de “defensores do contribuinte”. A mídia lhes dá respaldo. Numa operação pouco sofisticada (mas eficaz, porque repetida ad nauseam) a sonegação passa de crime elitista e ato eticamente ultra-egoico a… gesto de desobediência civil!

E como o CARF assumiu tal formação? A pesquisa de Ricardo Fagundes vai atrás das respostas. O conselho é composto, essencialmente, pela mesma base ultra-elitista que tinha nos anos 1920, quando o Imposto de Renda foi criado. À época, os “donos do país” – fazendeiros, criadores de gado, chefes políticos locais que controlavam as eleições “a bico de pena” – o compunham. Na tendência brasileira aos arranjos entre elites, o CARF nunca mudou. Sua essência foi mantida pelo getulismo, pela frágil democracia liberal pós-1946, pela ditadura militar e pela Nova República (em suas versões peemedebista, tucana e petista). O órgão tornou-se um dos baluartes da injustiça tributária brasileira. Bastou uma substituição: há cem anos, privilegiava-se a oligarquia agrária. Agora, a favorecida é… a oligarquia financeira.

E o que faz a alteração agora sancionada por Bolsonaro? Dá poder inédito à… velha política. Exatamente aos grupos poderosos que o discurso patife do capitão diz combater. Apesar de todos os seus males, o CARF conservou uma garantia mínima. Nas decisões tomadas em suas câmaras, o eventual empate é desfeito pela decisão de um técnico da Receita Federal. As câmaras são compostas “paritariamente” por auditores fiscais e representantes dos sonegadores – ops… confederações empresariais. Nos casos de empate, há um voto de minerva. Quem o profere é um técnico da Receita. A decisão de Bolsonaro torna tudo ainda pior, ao eliminar esta figura. A partir de agora, sempre que houver empate prevalecerá… a posição do devedor da Receita – ou seja, do sonegador de impostos.

A mudança é muito relevante. Hoje, o principal trunfo dos sonegadores no CARF é a protelação. Como os julgamentos duram em média nove anos, e como após este período ainda é possível recorrer ao Judiciário (cujo viés de classe e morosidade são também muito conhecidos), recorrer ao conselho pode garantir, facilmente… 18 anos de adiamento para pagar os impostos sonegados.

Em parecer oficial, o próprio ministro Sérgio Moro insurgiu-se contra a alteração. Lembrou que poderá prejudicar, inclusive, as ações da Operação Lava Jato. Para Bolsonaro, pesaram mais os vínculos com o grande poder econômico. O presidente poderia, facilmente, vetar o dispositivo que favorece os sonegadores. Sua decisão de apoiá-los é reveladora. E ajuda a compreender, também, por que bancos, corporações e pessoas físicas endinheiradas, mesmo quando se incomodam com os gestos impróprios do capitão, fazem vistas grossas e acabam, no final das contas, mantendo seu apoio a ele.

A entrevista com Ricardo Fagundes da Silveira, que encabeça este texto é, no entanto, sinal de que algo pode estar mudando. Em meio à crise do coronavírus, cresce a parcela da população que não se satisfaz com os gestos hipócritas dos “beneméritos”. Percebe-se que regredir à caridade significa reconhecer privilégios e aceitar que o 0,1% continue se apropriando da riqueza coletiva. As alternativas são uma Reforma Tributária profunda e a própria revisão dos conceitos de crédito, moeda e redistribuição. O trabalho que temos a satisfação de apresentar é um tijolo indispensável neste edifício que está por construir.

 

[1] Intitulada “Muito além da Zelotes!: as disputas do contencioso fiscal e os interesses das corporações empresariais no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) entre 2013 e 2017. 2019”, a dissertação de Ricardo Fagundes Silveira

Ricardo Fagundes da Silveira é Auditor Fiscal da Receita Federal. Mestre em Sociologia Política pela UFSC. Bacharel em Ciências Contábeis pela PUC/MG. Bacharel em História pela UFSC


por Antonio Martins, Jornalista e editor do site Outras Palavras. Foi fundador da edição brasileira do Le Monde Diplomatique | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

Publicado em Outras Palavras

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