A divulgação da gravação do plenário da Newshold, empresa proprietária do diário i e do semanário Sol, no qual o administrador Mário Ramires comunicou aos jornalistas a saída dos accionistas e o encerramento dos dois jornais é um gesto de desespero que traduz, de forma simbólica, o estado desesperado em que se encontra parte da comunicação social portuguesa. Ouvindo a gravação disponibilizada pela própria empresa pensa-se que só por engano ou por masoquismo se divulga uma reunião onde um administrador descontrolado e em desespero comunica aos trabalhadores que têm de escolher, ali mesmo, entre a peste e a cólera.
Mário Ramires foi jornalista da agência Lusa, dali passou para o Expresso e acompanhou depois o então director deste semanário, José António Saraiva, na fundação do Sol. Ramires cobria os assuntos da Presidência da República no tempo de Mário Soares. Foi aí e durante várias visitas de Estado do Presidente que ele acompanhou como jornalista, que o conheci de perto e constatei as suas qualidades pessoais e profissionais.
Reencontrei-o mais tarde na Entidade Reguladora (ERC), era então já ele um dos directores do Sol. O assunto era um alegado telefonema que, segundo o director Saraiva, Mário Ramires teria recebido de alguém próximo do então primeiro-ministro Sócrates, por causa das notícias sobre o Freeport publicadas pelo Sol. Ramires foi chamado à ERC para concretizar a alegada pressão mas recusou divulgar o nome da pessoa, desvalorizando o telefonema que tinha recebido. A pessoa “próxima do primeiro-ministro” era alguém com quem Ramires tinha relações de proximidade, não tendo o telefonema tido a carga negativa que lhe fora atribuída por Saraiva. Ramires teve um gesto honesto, “políticamente incorrecto” na altura.
Na gravação do plenário que ele próprio quis que fosse pública, Ramires surge como um homem abatido pela deserção dos financiadores dos dois jornais que ele e os que o acompanharam tão esperançadamente abraçaram. Os trabalhadores que o ouvem na gravação parecem desconcertados, como se não compreendessem o que se está a passar. Batem palmas quando Ramires, sempre em voz alterada, lhes pede que o façam ou, timidamente, fazem perguntas. Pelo que se percebe, alguns assinam o papel que ele impõe aos que quiserem continuar a confiar nele. A cena (sonora) é patética.
E assim se atiram umas dezenas de jornalistas para o desemprego, enquanto a outros, os que ficarem no novo projecto prometido por Ramires, se retiram condições de trabalho e se cortam vencimentos. Não há dinheiro, diz Ramires, mas há um projecto… O resto se verá….
É uma sensação estranha e nostálgica a que fica depois de se ouvir esta gravação. Não é só a morte de dois jornais, independentemente do que se pense sobre o seu conteúdo e as causas a que se dedicaram. É também o desemprego de tantos jornalistas que assim se juntam a muitos outros. E é sobretudo a certeza de que os jornais e o jornalismo se tornaram descartáveis, ao sabor dos interesses de quem os compra, de quem os vende ou de quem simplesmente os abandona quando já não lhes servem.
Mário Ramires, o jornalista competente e íntegro diz naquela gravação que na Newshold aprendeu muito. Nessa aprendizagem conta-se, nas suas palavras, ser “mais mafioso que os mafiosos”.
Vem-me à memória a edição de Agosto deste ano, quando o Jornal de Negócios (JdN), apontou o banqueiro e homem de negócios angolano, Álvaro Sobrinho, ex-administrador do BES Angola e dono da Newshold, como o 37.º de uma lista dos “mais poderosos de Portugal”. Segundo o JdN a classificação atribuída a Sobrinho derivava do poder mediático decorrente da propriedade de dois jornais portugueses – jornal i e semanário Sol.
Álvaro Sobrinho não precisará mais de usar o “poder mediático” que os dois jornais lhe proporcionaram e por isso os abandona?
[…] (artigo publicado hoje no jornal electrónico TORNADO) […]
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