Em 20 de Julho último sob o título “Deliberações do SNESup sobre aumento dos níveis salariais” a direcção deste sindicato divulgou um comunicado onde designadamente se podia ler:
“A perda real de salário que a esmagadora maioria de nós, docentes do ensino superior e investigadores, tem vivido ao longo dos anos, agravou-se nos últimos meses devido ao contexto de inflação crescente, que neste momento ultrapassa os 8%.”
e
“Acresce, ainda, a ausência de revisão dos valores das tabelas remuneratórias de investigadores e professores do ensino superior desde há mais de uma década. A este propósito, recorde-se que as nossas carreiras já estiveram, no passado, indexadas às da magistratura, mas que, atualmente, enquanto o índice 100 da carreira de magistratura é de 2.580,58€, o mesmo valor é de 1.656,52€ para os docentes e investigadores do ensino superior e ciência. Considerando esta perda de equiparação com a carreira dos magistrados judiciais e a não atualização das tabelas remuneratórias, a nossa perda salarial é ainda mais significativa. “
Poderá ser útil recordar em que contexto e em consequência de que acções veio a existir tal “indexação”, entre que anos se manteve, como se perdeu, e por que razão não foi recuperada.
Os primeiros diplomas estatutários e o sistema de letras
As condições de funcionamento e de exercício de funções docentes nas universidades estiveram a partir de 1930 reguladas pelo Estatuto da Instrução Universitária tendo sido necessário aguardar até 1970 para que se tivesse um diploma com características de Estatuto de Carreira – o Decreto-Lei nº 132/70, de 23 de Abril, da iniciativa de Veiga Simão – o qual, no domínio remuneratório, manteve as categorias docentes do ensino superior dentro do sistema de letras. Aos professores catedráticos correspondia na altura a letra C.
Embora se tivessem constituído em todo o país sindicatos de zona pluri-sectoriais com significativa adesão, inclusive no ensino superior(i), não estava garantida na lei nem na prática a negociação dos diplomas relativos à carreira: o Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) publicado em Novembro de 1979(ii) foi meramente compulsado em fotocópia numa reunião com o Secretário de Estado do Ensino Superior por dois dirigentes do SPGL só tendo a discussão sido objecto de maior participação quando a Aliança Democrática vitoriosa nas eleições legislativas recentes chamou o texto, entretanto publicado, a ratificação parlamentar e foi enfrentada por uma mobilização de interessados.
Cabe dizer que o Estatuto da Carreira Docente Universitária e o Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico (ECPDESP) existem respectivamente desde 1979 e 1981(iii), embora tenham sofrido numerosas alterações, e uma revisão sistemática em 2009 e 2010. No plano remuneratório, o professor catedrático passava a deter a letra A, situação a que também poderia ter acesso no ensino politécnico, o professor coordenador com agregação.
Um dos aspectos em que as alterações que foram sendo introduzidas vieram a consolidar as intenções originais foi a previsão de um regime de dedicação exclusiva, inicialmente ligado pelo menos nominalmente à condicionalidades relacionadas a orientação / execução de programas – “remuneração complementar” e “subsídio de formação / investigação” no ECDU, “subsídio complementar” no ECPDESP e à renúncia a outras actividades remuneradas, incluindo o exercício de profissão liberal, o que teve um efeito determinante na criação de condições para o desenvolvimento no trabalho académico.
O poder político preocupou-se, compreensivelmente, com o enquadramento regulamentar do controlo do cumprimento do compromisso de renúncia a outras actividades, mas é importante assinalar que na Universidade de Coimbra as questões remuneratórias ligadas à dedicação exclusiva estavam a ser debatidas, foram do quadro dos sindicatos existentes, por um movimento coordenado por representantes eleitos nas várias Faculdades, formando uma Comissão Executiva.
No final de 1982 realizou-se naquela Universidade uma paralisação que visava essencialmente garantir que os valores pagos pelo exercício de funções em regime de dedicação exclusiva deveriam sempre ser tratados como remunerações para todos os efeitos legais, inclusive cálculo de pensões de aposentação e de sobrevivência.
No início de 1983, ainda na vigência do III Governo da Aliança Democrática, presidido por Francisco Pinto Balsemão, foi publicado, como Portaria nº 1/83, de 3 de Janeiro (Fixa normas que permitam aferir das condições de cumprimento dos compromissos assumidos no âmbito do regime de dedicação exclusiva) um diploma do Ministério da Reforma Administrativa, também aplicável às carreiras médicas, que pelas suas formalidades de aprovação, incluindo promulgação, se percebe ter sido tramitado como Decreto-Lei. Nunca houve contudo qualquer declaração de rectificação a esta publicação manifestamente errada na qualificação do diploma como Portaria. Para além, do recurso à declaração de imposto complementar como instrumento de controlo, nada mais é dito expressamente no diploma, não se podendo excluir que dele – ou de interpretação feita na altura pelos Ministérios – resulte implicitamente a leitura de que os pagamentos de dedicação exclusiva têm inequívoco carácter remuneratório.
Um plenário de docentes do ensino superior de Lisboa, realizado no âmbito do SPGL, enviara a Coimbra uma delegação de três elementos tendo, através de contacto entre Irene Lopes, da FCUL(iv), e de Abílio Hernandez, da FLUC obtido acordo para a sua presença numa reunião da Comissão Executiva de Coimbra. Ficámos cientes de que nas discussões de Coimbra se incluía a possibilidade de reivindicar a indexação das remunerações à magistratura, aliás muitos dos juízes conselheiros haviam sido formados pelos Professores da respectiva Faculdade de Direito. No entanto essa proposta não viria a ser incluída na agenda da paralisação.
A indexação à carreira dos magistrados judiciais
As eleições legislativas do final de 1985, depois do fim do Governo do Bloco Central, presidido por Mário Soares, levaram à constituição de um governo minoritário do PSD, dirigido por Cavaco Silva, e à formação de um forte grupo parlamentar do PRD – Partido Renovador Democrático, com 45 deputados.
Em 1986 um grupo de deputados do PRD encabeçado por Carlos Sá Furtado, que fora um dos membros da “Comissão Executiva” de Coimbra(v) faz passar um projecto de lei que daria origem à Lei nº 6/87, de 27 de Janeiro (Alterações às disposições relativas ao regime de dedicação exclusiva nas carreiras docentes universitária e do ensino superior politécnico e de investigação científica) votada em Novembro e que deveria produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1987.
Apesar da epígrafe é neste diploma que se consagra a saída das carreiras do sistema de letras e a indexação à magistratura com nova redacção do Artigo 74º do ECDU, passando a estipular-se, em relação aos vencimentos dos docentes universitários em regime de dedicação exclusiva que “O vencimento dos professores catedráticos é igual ao de juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça” e que as remunerações das restantes categorias se definem em percentagem do vencimento dos professores catedráticos”, bem como que para além do regime geral de diuturnidades em vigor na função pública o regime de diuturnidades especiais em vigor para os magistrados judiciais seria extensivo aos professores auxiliares, associados e catedráticos.
Fica definido na nova redacção do Artigo 74º que a situação regra é a dedicação exclusiva equivalendo o tempo integral a dois terços da remuneração em dedicação exclusiva, princípio que ainda hoje se mantém nos Estatutos de Carreira e foi aliás reforçado na revisão de 2009 e de 2010.
No entanto o Governo de Cavaco Silva defendendo que se deveria aguardar a aprovação de um novo sistema retributivo para cujo estudo já havia sido nomeada uma Comissão fez incluir no OE para 1987 uma norma de limitação de efeitos desta Lei ainda não publicada e viria a fazer sair em 24 de Março um Decreto-Lei nº 145/87, que produziu igualmente efeitos a 1 de Janeiro de 1987, suprimiu referências à carreira de investigação científica e regulou de forma diferente a concessão das diuturnidades especiais e as nomas aplicáveis ao ensino superior politécnico, e de algum modo lançou no oblívio a iniciativa parlamentar que deu origem à Lei nº 6/87. Todavia a indexação dos vencimentos dos professores catedráticos ao de juiz conselheiro do STJ manter-se-á por algum tempo.
Derrubado o Governo algum tempo depois por uma moção de censura do PRD e dissolvida a Assembleia pelo Presidente da República Mário Soares, que não quis viabilizar uma alternativa parlamentar, Cavaco Silva obtém a sua primeira maioria absoluta.
A indexação alcançada não se manteve por duas ordens de razões, convergentes:
- o novo sistema retributivo, cujas bases foram publicadas em Junho, proibia a indexação “Cada escala indiciaria contém a totalidade dos índices referentes aos cargos que visa remunerar, não podendo ser estruturada percentualmente sobre outras escalas ou vencimentos de cargos públicos abrangidos ou não pelo presente diploma.”(vi)
- Cavaco Silva deu indicações para consagrar uma revalorização substancial das remunerações dos magistrados judiciais, ao que julgo por ter sido então publicada uma reforma judicial de alguma dimensão.
A importância de ter um Sindicato
A inexistência de um sindicato próprio que, do ponto de vista organizativo e de representação institucional, pudesse falar pelos docentes do ensino superior e investigadores, pesou igualmente na desqualificação relativa daquelas classes profissionais.
O ensino superior constituía em cada um dos sindicatos de zona um mero “sector”, sendo os órgãos dirigentes de cada sindicato eleitos em bloco. Uma vez aprovado o ECDU os ditos sindicatos mostraram-se desinteressados pelos problemas relativos à sua aplicação: “Já têm um Estatuto, que querem mais?”
Nestas condições os sindicatos existentes tinham pouco que oferecer aos docentes. É conhecido como Mário Leston Bandeira, do ISCTE, promoveu junto de outras instituições a criação de uma Comissão Interescolas de Lisboa, e foi responsável pela formulação segundo a qual as carreiras do ensino superior sendo de elevada qualificação, exigência e responsabilidade deveriam, em termos de remuneração, ocupar lugares elevados no conjunto das carreiras tuteladas pelo Estado, como um primeiro plenário de docentes e investigadores de Lisboa realizado na Faculdade de Letras foi tendo réplicas por todo o país, como um amplo movimento de greve às avaliações foi atingindo as provas de acesso ao ensino superior.
Num esforço de manter as pontes com o movimento a FENPROF e o SINDEP admitiram nas delegações negociais dois dirigentes da Associação Portuguesa do Ensino Superior. No entanto a necessidade de prosseguirem o processo negocial relativo ao básico e secundário levou-os a afastarem-se dos processos de luta. As escalas indiciárias próprias do “sector” viriam a ser aprovadas por decreto-lei mas logo que este desfecho se esboçou, avançou pelo seu lado o processo de realização de uma Assembleia descentralizada por secções de voto que, com 1805 participantes, deliberou a constituição de um Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup).
Isabel Corte-Real, Secretária de Estado da Modernização Administrativa, viria a singularizar referir os casos das Alfândegas e do Ensino Superior, como os mais difíceis na concretização do denominado Novo Sistema Retributivo que haveria de vigorar de 1989 a 2008. No SNESup a (manutenção da) equiparação à magistratura foi durante muito tempo referida como a reivindicação fundadora do Sindicato.
Anos depois, mais precisamente em 1995, a luta pela valorização retributiva dos docentes do ensino superior e investigadores volta a eclodir, com outra arrumação dos protagonistas: desta vez SNESup, FENPROF, SINDEP e também Comissões de Docentes e Investigadores (CDI’s), segundo uma ideia de Mário Leston Bandeira desencadeiam formas de luta concertadas entre os intervenientes com formalização de uma Plataforma Reivindicativa Comum (PRC).
A circunstância de ao III e último Governo de Cavaco Silva se seguir o I Governo, minoritário, de António Guterres, de que Marçal Grilo é Ministro da Educação facilitou a celebração de um Acordo de Legislatura entre o Governo e a PRC. Muito sinteticamente os índices que correspondiam às carreiras docentes do ensino superior e de investigação científica seriam entre 1996 e 1999 valorizados em 20 % e deveria ser mantida uma distância entre as posições de ingresso no ensino superior e no básico e secundário. Assim se fez, com negociação anual dos diplomas de reajustamento, sem que se repusesse a indexação à magistratura judicial(vii).
Tal reposição foi aliás implicitamente abandonada pelo SNESup, uma vez que tendo sido colocada em Conselho Nacional, julgo que no início de 2002, a possibilidade de a reivindicação ser retomada a proposta não foi apoiada. O Conselho apontou sim para que se lutasse pela institucionalização do subsídio de desemprego, o que veio a ser conseguido em 2008(viii).
O acordo conseguido pela PRC com Marçal Grilo teve um desenvolvimento curioso: a FENPROF e o SINDEP conseguiram do Ministério da Educação uma revalorização da carreira do básico e secundário em termos que ofendiam o Acordo de Legislatura celebrado para o ensino superior porque ultrapassavam os valores para o ingresso nas carreiras abrangidas por este. Esse problema, criado pelos nossos “aliados”, corrigir-se-ia valorizando as carreiras do superior em 5%, no entanto quando a FENPROF e o SINDEP colocaram esse cenário ao SNESup, fizeram-se eco de uma sugestão (colhida no ME?) de que tal valorização só abrangesse o universitário e não o politécnico, o que o SNESup recusou. O assunto não teve evolução. Ainda hoje me interrogo sobre os bastidores.
Entre 2002 e 2022 muito aconteceu no domínio retributivo, inclusive cortes – já revertidos – e congelamentos. No entanto se os magistrados judiciais obtiveram uma substancial melhoria de posição é porque, é preciso dizê-lo, depois de períodos de desorientação estratégica, têm hoje um sindicato combativo que soube aproveitar a altura certa para obter resultados. E o SNESup, que ultimamente até vem falando do “setor” como se estivesse para se integrar numa das federações, está definitivamente esgotado?
Notas
(i) Por exemplo, Aníbal Cavaco Silva foi um dos muitos aderentes iniciais do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL) no então Instituto Superior de Economia (ISE).
(ii) DL 448/79, de 13-11 que após a ratificação com emendas deu origem à L 19/80, de 16-7.
(iii) Tenha-se em conta que o ECPDESP inicialmente apenas foi sendo aplicado a escolas abrangidas pelo Decreto-Lei nº 132/70 e que foram deixadas fora do ECDU.
(iv) Para além de Irene Lopes, a delegação incluía Nuno Ivo Gonçalves, então ainda no ISEG, e tal como a colega anteriormente indicada, membro do Secretariado eleito pela Assembleia de Delegados Sindicais do Ensino Superior, e Guilherme Arroz, do IST.
(v) Julgo que em representação dos docentes da FCUC.
(vi) Artigo 21º do DL 184/89, de 2-6.
(vii) Foi assinado e executado simultaneamente um Acordo do mesmo teor com a FNE, que não integrava a PRC.
(viii) A possibilidade de retomar a reivindicação de equiparação à magistratura foi levantada por mim próprio sem que – por ser docente do privado – tivesse nisso interesse pessoal e logo recusada por outro colega do privado, o Vice-Presidente do Conselho Nacional José Matos Pereira. A orientação relativa à reivindicação do subsídio de desemprego foi defendida por Pedro Marques, do Instituto Politécnico da Guarda.