53º Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary – Alguns dias após a conclusão do festival aqui fica uma breve memória de uma semana de cinema que pude viver, pelo quarto ano consecutivo, na cidade checa de Karlovy Vary.Consensualmente considerado como um dos mais importantes certames europeus – e da Europa Central e de Leste, em particular – a mostra de Karlovy Vary tem uma história que vem desde 1946. Refira-se que entre 1952 e 1994, o festival se realizou de dois em dois anos, alternando com Moscovo, porque a Federação Internacional de Festivais de Cinema só permitia, em cada ano, a realização de um Festival da classe “A” em todo o ‘bloco soviético’.
“East of the West” – conhecer o cinema de leste
Desde a fundação Karlovy Vary privilegia, muito naturalmente, e nas várias áreas de programação, o ‘cinema de leste’. Cinema de países cujas obras muito raramente chegam aos ecrãs ocidentais.
A secção “East of the West” é a principal evidência desta opção, e face à crescente dificuldade que a organização revela em constituir uma ‘secção oficial’ (supostamente a mais importante do festival) com qualidade e interesse aceitáveis, tem vindo a revelar-se, em paralelo com a competição de documentários e as mostras ‘Horizons’ e “Another View’ – constituídas fundamentalmente por filmes premiados noutros festivais ou de jovens autores em fase de afirmação –, o refúgio dos cinéfilos mais exigentes.
Nesta 53ª edição o Grande Prémio de “East of the West” foi Suleiman gora (A montanha Suleiman) di Elizaveta Stishova (Quirguistão / Rússia), um interessante drama familiar que se desenrola num belo e inóspito cenário natural numa região que é Património da Humanidade. Um dos pouquíssimos filmes produzidos pelo Quirguistão.
O Prémio especial do Júri desta secção foi para um road-movie: Blossom Valley (O vale das flores) de László Csuja (Hungria). A história de um jovem casal de namorados que percorre, juntamente com um bebé raptado pela rapariga, quilómetros sem fim numa autocaravana. Um filme que assinala a estreia no cinema de um experiente realizador da televisão húngara.
Secção oficial particularmente desinteressante
A vida não está fácil para quem, na maioria dos festivais, tem que selecionar filmes para a competição oficial. Berlim, Cannes e Veneza são os festivais em que as grandes produtoras e os cineastas mais mediáticos colocam todas as fichas. E, por isso, os outros lá vão tentando fazer ‘pesca à linha’ e conseguir algo de interessante. Muito francamente em Karlovy Vary/2018 isso não terá sido conseguido. O conjunto de obras candidatas ao “Globo de Cristal” e outros galardões oficiais foi, em nossa opinião, muito pouco estimulante e não será necessário muito tempo para todas elas passarem ao rol do esquecimento.
Apesar disso, e sabe-se lá com que esforço, o ‘júri oficial’ acabou por conseguir atribuir os prémios em disputa (refira-se que na ‘história do festival’ há edições em que alguns prémios não foram atribuídos) e incluir no palmarés algumas das obras que de alguma forma ultrapassaram a mediania (ou até a mediocridade) da maioria.
Os premiados foram os seguintes:
Globo de Cristal – melhor filme – I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians / Îmi este indiferent dacă în istorie vom intra ca barbari de Radu Jude (Roménia / Rep. Checa / França / Bulgária / Alemanha), conta a recriação encenada, num espaço público, de um massacre perpetrado pelo exército romeno em 1941. A tentativa da encenadora para enquadrar a história na política do III Reich de perseguição e extermínio dos judeus vai sendo dificultada ao longo do filme que, embora demasiado longo, tem uma linguagem e construção bastante originais e que nos ajuda a perceber como, nos dias que correm, em muitos países europeus há uma crescente aceitação das práticas nazis. Este foi, também na nossa opinião, o mais interessante filme da competição oficial.
Prémio Especial do Júri – Sueño Florianópolis de Ana Katz (Argentina / Brasil / França). Esta é a história, com alguns laivos neo-realistas, de uma família de Buenos Aires que decide passar as suas férias numa praia da cidade brasileira, capital de Santa Catarina. Os incidentes de viagem, as peripécias para encontrar alojamento, as crises nos casais, as relações dos visitantes com os donos do local de acolhimento são ingredientes de uma comédia que foi como uma lufada de ar fresco numa selecção monótona e sensaborona. Foi este o filme que recebeu o Prémio FIPRESCI, o prémio da crítica.
Melhor realizador – Olmo Omerzu por ‘Winter Flies / Všechno bude’ (Rep. Checa / Eslovénia / Polónia / Eslováquia)
Melhor actriz – Mercedes Morán em ‘Sueño Florianópolis’ de Ana Katz
Melhor actor – Moshe Folkenflik em ‘Redemption / Geula’ de Joseph Madmony, Boaz Yehonatan Yacov (Israel)
Menção especial do Júri – Jumpman / Podbrosy de Ivan I. Tverdovskiy (Rússia / Lituânia / Irlanda / França) e History of Love / Zgodovina ljubezni de Sonja Prosenc (Eslovénia / Itália / Noruega)
Tim Robbins – Do discurso na abertura a um concerto inolvidável
A presença de algumas personalidades do mundo do cinema com apreciável mediatismo é uma das características do Festival de Karlovy Vary. Para além dos milhares de espectadores que assistem às várias dezenas de sessões diárias, são muitas mais as pessoas que passam pelo Hotel Thermal (o principal ‘palco’ do certame) ou pelo Hotel Pupp (o mais luxuoso da. cidade) para tirar uma ‘selfie’ ou para procurar obter autógrafos dos realizadores e intérpretes dos filmes exibidos. De registar, por exemplo, o destaque que o próprio festival atribuiu a Terry Gilliam e Joana Ribeiro presentes a propósito da exibição de The Man Who Killed Don Quixote.
Mas uma das presenças mais impactantes terá sido a de Tim Robbins. Desde logo pela repercussão das suas declarações na cerimónia inaugural em que criticou de forma contundente Donald Trump e as suas posições sobre os imigrantes e os refugiados. Mas também, e para felicidade dos que a ele puderam assistir, pelo concerto que teve lugar passados alguns dias no belo Teatro Municipal, uma sala parecida com a do Teatro Nacional de S. João, do Porto, mas mais pequena.
Um espectáculo intimista, com uma excelente qualidade de som e com músicos de grande nível da “The Rogues Gallery Band”, o grupo que acompanha habitualmente o cantor e compositor Tim Robbins. Sim, o actor, realizador, encenador, escritor, músico e activista político também gosta de dar concertos.
E aqueles que, naquela noite, prescindiram da visão de um dos filmes do festival para o ir ouvir foram brindados com espectáculo inolvidável por onde passaram músicas de Tim Robbins, mas também de Pete Seeger, Woody Guthrie, Billie Holiday, canções tradicionais norte-americanas, músicas da resistência italiana, enfim uma sequência empolgante e arrebatadora só entrecortada pelas referências a Milos Forman, a Mandela e a Vaclav Havel, aos refugiados e à relevância da acção dos imigrantes na construção dos Estados Unidos (em todas as áreas, mas em particular no cinema).
Concluindo: quando daqui a algum tempo recordar o Festival de Karlovy Vary de 2018 já não me lembrarei de quase nenhum dos filmes que lá vi. Mas acabarei por dizer: ‘Ah! Foi o festival em que assisti ao concerto do Tim Robbins!…
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