A Queima das Fitas de Coimbra é uma festa estudantil com mais de um século de tradição. Sofreu várias alterações, com o avançar dos tempos, mas é uma tradição que leva os quartanistas e finalistas a celebrar a sua passagem por Coimbra e a conclusão do seu ciclo de estudos.
As origens da Queima são normalmente atribuídas ao marcante Centenário da Sebenta (1899). Nesse ano, entre 28 a 30 de Abril, realizaram-se celebrações monumentais que incluíram música e muita algazarra nas ruas, um sarau, a ideia de ser o momento da emancipação do caloiro e cortejos grandiosos.
Por exemplo, um deles, envolvendo cerca de 30 carros que, como hoje, desceu da Porta Férrea da Universidade até à Baixa da Cidade de Coimbra. Mas há registos de um outro, que envolveu perto de 30 barcos, e que desfilou pelo no rio Mondego (rio que era, e ainda é, apelidado de “basófias” por ultrapassar as margens durante o inverno, por vezes com grande intensidade, mas ficar reduzido a um caudal muito menor durante o verão). As semelhanças das comemorações do Centenário da Sebenta com a actual Queima justificam a ideia de atribuir a este evento a origem da própria Queima das Fitas. No entanto, as semelhanças são algo aparentes, apesar de alguns excessos que hoje se verificam terem aparentemente ali a sua origem.
A actual Queima das Fitas começa com a Monumental Serenata, um evento marcante para todos os estudantes e que, de facto, diferencia Coimbra. É algo muito difícil de copiar. Precisa do ambiente de Coimbra, de boémia, daquele local na Sé-Velha, do Fado de Coimbra. É um momento único e muito especial. O Sarau, o Baile de Gala, a emancipação do Caloiro, o Cortejo e uma certa monumentalidade de toda a Queima das Fitas, entre outros, são manifestações que, de facto, decorrem desde esse tempo.
No entanto, o Centenário da Sebenta não foi uma festa de fim de ano. Foi organizada por alunos de vários anos em data anterior ao “dia do ponto”, que era o último dia de aulas e que ocorria, normalmente, a 12 de Maio. A festa de fim de ano, a “Queima das Fitas”, era organizada pelos alunos quartanistas no “dia do ponto” há já vários anos. Na verdade, essa é a primeira perplexidade. O que é que explica que esse evento fosse organizado pelos alunos quartanistas, como ainda hoje acontece com a Queima (o cortejo é dedicado aos quartanistas que organizam e constroem os carros que desfilam pelas ruas de Coimbra entre a Porta Férrea e a Baixa da cidade), e não pelos finalistas?
A “queima das fitas”
Na altura, os alunos quartanistas queimavam umas fitas de algodão que eram usadas para atar as pastas onde se guardavam as sebentas. Essas fitas tinham as cores das várias faculdades, apesar de as mais referenciadas nos escritos da época serem as de Medicina e as de Direito, os cursos de maior tradição na Universidade de Coimbra da altura. Os quartanistas queimavam essas fitas com grande pompa no “dia do ponto” (último dia de aulas) de cada faculdade. Como esse dia variava de faculdade para faculdade, havia várias cerimónias de “queima das fitas”.
A tradição
O destino das fitas variava muito. Alguns lançavam-nas ao vento a partir de um lugar alto (por exemplo, a torre da Universidade de Coimbra), outros tinham outras atitudes. Por exemplo, em 1903 os estudantes de Medicina ataram as fitas a balões que lançaram no ar com as fitas a arder. No entanto, a tradição era recolher as cinzas das fitas, levá-las em procissão até à Porta Férrea e enterrá-las numa cova térrea aberta por um caloiro. Depois de colocadas no buraco, os quartanistas de cada curso urinavam no buraco em simultâneo.
A tradição não se manteve (o facto de se registarem anualmente cenas degradantes de estudantes a urinar em todos os locais da cidade, resultando um cheiro matinal a urina verdadeiramente inaceitável, não pode ser considerado algo que resultou da tradição de urinar nas cinzas das fitas, mas tão somente má educação), até porque o chão da porta Férrea foi calcetado, mas também porque seria difícil manter tão estranho hábito nos dias de hoje, nomeadamente dada a quantidade de alunos e dada a presença de elementos femininos. Seja como for, ainda se usa um penico como recipiente para ter as cinzas e, até há pouco tempo, os carros levavam esse penico consigo no interior para, ali mesmo, se dar azo ao desprezo pelas cinzas das fitas. Naquela altura, o esforço de estudo durava até ao 4º ano. Passado esse ano, o então bacharel tinha acesso a saídas profissionais e era tradição que ninguém chumbava no último ano, o que dava direito a licenciatura. Assim, as fitas usadas até esse ano eram queimadas e substituídas por outras mais largas e vistosas que sinalizavam um novo “doutor”.
E os “Doutores” de Coimbra
Era necessário dar a conhecer a todos, em Coimbra e na terra de onde vinham, que estava ali uma pessoa de sucesso, potencialmente próspera e “doutor” de Coimbra. Queimar as fitas da pasta das sebentas, sinal e testemunho do esforço feito, urinar nas suas cinzas e substituí-las por outras mais largas, sinal de sucesso e de fim de esforço, era assim uma forma de sinalizar aos outros o novo estatuto de bacharéis, até que pudessem exibir o título de licenciatura (muitos não prosseguiam e ficavam pelo título de bacharel). No século XIX era comum a expressão “urinei na Porta Férrea” como sinal de conclusão do bacharelato.
A cerimónia de “queimar as fitas” acabou por se transformar num acto simbólico cujo significado assenta na proximidade a um objectivo muito desejado: o término do curso.
Como a Queima passou a festa da cidade
As grandes transformações na festa da “queima das fitas” foram decorrendo desde o início do século XX. Em 1901, os estudantes do IV ano jurídico organizaram um cortejo com cerca de 20 carros motorizados e a cavalo, enfeitados com flores: as flores de papel são hoje o motivo principal de decoração dos carros do cortejo. Em 1903, realizaram-se duas queimas das fitas: uma organizada pelos quartanistas de direito e outra pelos de medicina.
Em 1905 realizou-se o “Enterro do Grau “, em consequência da reforma dos cursos universitários e, pela primeira vez, verificou-se a participação muito activa da população de Coimbra. A Queima das Fitas passou a ser assim uma festa da cidade, bem-recebida pela população, mas cuja iniciativa pertencia aos estudantes. Em 1913, a polícia decidiu controlar a latada, o que resultou no famoso episódio do boné, roubado por um estudante a um tenente da GNR. O espírito irreverente de Coimbra encarregou-se do resto e a expressão “olha o boné!” tornou-se popular.
Apesar de tudo isto, as celebrações da Queima tiveram algumas interrupções até 1919, condicionadas pela realidade política, económica e social desse período da nossa história colectiva. São exemplos dessas interrupções a proclamação da República e a 1ª Grande Guerra Mundial. Mas é a partir de 1919 que as celebrações académicas começaram a adquirir a estrutura que conservam actualmente. Na verdade, a partir desse ano foram sendo adicionados os outros eventos que hoje fazem parte da Queima das Fitas: a Garraiada (1929/1930), a Venda da Pasta (1932), o Baile de Gala das Faculdades (1933), etc. Em 1930, altura em que se fazia a festa com champanhe e não com cerveja, a festa era como se documenta neste vídeo.
Queima das Fitas de Coimbra em 1930
Política Nacional e Coimbra
Mas a situação política do país, aliada à tradicional irreverência de Coimbra, foi tendo influência na Queima das Fitas. A 22 de Abril de 1969 é decretado o luto académico, o que se caracterizou por um extenso período de greve às aulas e pelo debate exaustivo e muito apaixonado dos problemas da Universidade de Coimbra.
O descontentamento reflectiu-se no cancelamento definitivo das festividades da Queima das Fitas: O Conselho de Veteranos decretou o luto, com capa e batina fechada e proibição do uso de insígnias, tendo a Reunião Geral de Grelados deliberado o cancelamento da Queima das Fitas. Apesar de em 1972 alguns estudantes terem tentado realizar festejos comemorativos (chegou a existir selo e cartaz, mas não o cortejo), a Queima das Fitas só regressaria em 1980, fortemente motivada pela muito significativa adesão verificada na “Semana Académica” de 1979. A organização da Queima das Fitas passou então a ser gerida por uma comissão central, constituída por um comissário de cada faculdade, que coordenava todo o trabalho de organização do evento.
A Queima das Fitas que se realiza hoje é aquela que resulta de todas estas tradições e transformações, adoptando um modelo organizativo que decorre do que foi decidido em 1980. Com uma enorme repercussão a nível nacional, a Queima das Fitas ultrapassou as fronteiras concelhias e nacionais, atingiu níveis nunca antes alcançados por qualquer outra organização do género e transformou-se numa grande festa que foi sendo “copiada” um pouco por todo o país.
A degradação da queima
No entanto, e apesar de tudo isto, a festa tem vindo a degradar-se e a transformar-se num evento que cada vez menos tem a ver com os estudantes, com a celebração dos seus sucessos e da sua passagem por Coimbra. Os excessos que se verificam de ano para ano, o muito elevado consumo de álcool e vários outros comportamentos de risco ameaçam o significado da festa que é a Queima das Fitas, mas também a imagem da cidade de Coimbra, da Universidade de Coimbra e dos seus estudantes.
Na verdade, o espectáculo a que se assiste anualmente no centro histórico da cidade durante a serenata – com várias dezenas de pessoas completamente bêbadas, muitas caídas pelo chão, que vomitam e urinam em qualquer local – é, em muitos aspectos, desolador e nada condizente com o grande espectáculo de fado e emoção que é (deveria ser) aquele momento. O que observamos no dia do cortejo, como de novo se pôde comprovar em 2017, com cenas verdadeiramente degradantes e que nos deveriam envergonhar a todos, mostra bem a necessidade de repensar esta festa e devolver-lhe o significado original.
A excelente foto (da autoria do fotógrafo Antonio Figueiredo) que ilustra este artigo, mostra bem os perigos de imagem que afectam a Queima das Fitas Coimbra. É preciso sensibilizar os estudantes e a organização da Queima das Fitas para a necessidade de acabar definitivamente com os excessos, que em nada nos dignificam como Universidade e como cidade, devolvendo à festa da Queima das Fitas o seu significado e tradição. Nas festas são admissíveis excessos, sem dúvida, mas tudo tem uma medida e um limite.
É urgente repensar
Este tipo de imagens é também uma péssima publicidade para as empresas que vendem bebidas alcoólicas, as quais deveriam ter uma presença bem mais responsável neste tipo de eventos. As marcas de bebidas alcoólicas deveriam ter mais cuidado, e ser bem mais responsáveis, na forma como participam em eventos que pretendem celebrar a vida estudantil e académica de novas gerações de Portugueses. O resultado de tudo isto é uma degradação muito evidente da imagem da Queima das Fitas. E isso vem em crescendo: todos os anos é um pouco pior. Muitos argumentam, até de forma comparativa, que também existiram excessos no passado que não foram controlados em devido tempo.
É verdade. No entanto, este problema é hoje muito sério porque os danos de imagem, para todos, são agora muito significativos. Afectam-nos a todos de forma muito evidente, mas, arrisco dizer, afectam de forma muito mais significativa os estudantes. A imagem anterior de boémia, associada a coragem, capacidade de intervenção e irreverência, com alguns excessos e excentricidades pelo meio, é agora essencialmente de excessos sem grande conteúdo. Isso não é nada positivo e tem de nos preocupar a todos.
Apelo aos órgãos da Universidade de Coimbra, da Cidade de Coimbra e da Associação Académica de Coimbra para que repensem a festa e tomem medidas para impedir os excessos, retomando de forma muito marcada a ideia original de uma festa estudantil, irreverente, interventiva, com aspectos culturais muito relevantes, muito divertida e atrevida. É isso que nos distingue.