Seremos nós ou a Saúde? Os doentes ou os serviços públicos de saúde?Uma pergunta como esta, por mais absurda e paradoxal que possa parecer, tem toda a pertinência em ser colocada a respeito da degeneração que se pode testemunhar numa realidade antes dita bem colocada internacionalmente. Com efeito, a edição de 2016 do Euro Health Consumer Index colocava o Serviço Nacional de Saúde português em 14.º lugar, com 763 pontos num máximo de 1000, entre 35 países europeus. O grande vencedor desta análise, feita com base no ponto de vista do consumidor, é a Holanda. Quanto a Portugal, subiu nesse ano seis lugares. Positivo não deixa de ser; porém, deve essa subida satisfazer-nos e tranquilizar-nos, contribuirá de algum modo para debelar a sensação de degradação? De modo nenhum. Se este índice vale alguma coisa, note-se que no ano seguinte o nosso país manteve o lugar, mas não sem uma queda de 28 pontos.
A tese de Doutoramento em Gestão de Paulo Simões, cirurgião geral, intitulada Evolução das Lógicas Institucionais no Campo da Saúde em Portugal, defendida no passado dia 14 na Ordem dos Médicos, Lisboa, apresenta um retrato de degradação que não começou nos anos da troika (de 2011 a 2015), mas em 2002, tendo esses terríveis anos contribuído para agravar o que já andava mal. A partir do seu estudo, assim se pronuncia o autor: Inicialmente foi a transição para o controlo do Estado, depois o governo impôs uma nova lógica de empresarialização dos hospitais públicos e a criação dos centros hospitalares, e posteriormente, foi tempo de centralização e restrição orçamental impostos pela Troika a partir de 2011. Tudo isto mudou profundamente a morfologia do sistema de saúde no nosso país”. A tese analisa:
- A desestruturação das carreiras médicas no SNS,
- a percepção negativa dos grupos profissionais sobre a lógica empresarial e de gestão do Estado,
- o esvaziamento de competências do SNS,
- o impacto do subfinanciamento dos hospitais e restrições orçamentais,
- os processos de colaboração entre ordens profissionais e o Governo:
- a mobilidade de profissionais do sector púbico para o privado:
- e as condicionantes dos cuidados de saúde
Em suma, o que de tudo decorre como estado das coisas é que alterações legislativas empresarializaram (passe o neologismo) a gestão da saúde. Isto levou a que, “Nos últimos anos, aumentou a percepção da diminuição da qualidade de prestação de cuidados de Saúde e a perda de legitimidade dos serviços públicos de saúde.”, gerou, como sintomas, médicos “mais desmotivados, administrações com menos autonomia e recursos mais limitados, situação que teve impacto directo na vida dos doentes”.
A coisa toca as raias do absurdo
Teve um profundo reflexo porque desestruturou as equipas. Ter um lugar num serviço público deixou de ser uma referência. Como me disse um administrador de uma agência governamental, o Estado passou a ter 50 hospitais a concorrer entre si. Passou-se a uma situação de roubar recursos humanos de um lado para outro e os mais favorecidos foram o sistema privado e as parcerias público-privadas que conseguiram captar os jovens mais promissores. Os mais velhos sentiram-se sob um constrangimento enorme e quem pôde foi embora.”
Esta tese merecia ser apreciada por quem tem responsabilidades tutelares no domínio da saúde. As percepções empíricas, afinal, tinham alguma razão.
Posso contar uma, minha. Vale o que vale. Mas não será de uma soma de casos particulares, vividos empiricamente, que se pode traçar um esboço geral de um domínio, de um sistema desenhado para suprir necessidades básicas com rapidez e eficácia de toda a população?
Pois bem, e graças a Deus gozo de boa saúde nos meus quase 50 anos. Porém, sofro de algo crónico e genético: elevado teor de colesterol mau e triglicerídeos. Há dois anos regressado a Portugal, ainda não tive, nem a minha família, médico de família atribuído. Nem em Almada, onde antes vivíamos, nem na Pontinha, onde vivemos há ano e meio. Razões: sempre as mesmas, falta de recursos; incapacidade de a oferta responder à procura. Ora, a Pontinha (concelho de Odivelas), agrupada a Famões após a reorganização administrativa de 2012/2013, regista nos Censos de 2011 uma população de 34 143. A Unidade de Saúde Familiar Nove Mirante, junta ao terminal de camionagem e ao Metro da Pontinha, serve não só esta freguesia como também a lisboeta de Carnide (1 738 residentes registados nos mesmo censos). Manifestamente uma estrutura que não chega para as necessidades. Inscritos, eu e minha família, há um ano, aguardamos atribuição de médico de família. Somos apenas um caso. Há já algum tempo que habitantes da Pontinha reclamam a construção de um centro de saúde que sirva a população desta populosa freguesia.
Em vão. A alternativa que lhes, que nos vai restando é acorrer à Unidade de Saúde Familiar da Urmeira, uma extensão do da Pontinha. Um recurso, que — bom seria se fosse o contrário — não funciona muito bem. Um balcão atrás do qual raramente estão duas funcionárias a atender. Dois médicos, às vezes só um, pelo que percebi. E marcar consulta é um purgatório: é melhor ir não sei quando, na primeira segunda-feira do mês (como já me recomendaram que fizesse). Ora, como, mea culpa, deixei acabar os medicamentos, sendo que deveria ter voltado ao médico muito antes para, ainda sob o efeito destes, pedir análise, fui uma manhã em que tive algum vagar e a isso me dispus, pelas 11 horas, tentar marcar uma consulta. Tirei senha. Parti: uma espera de 15 números, com ar de o atendimento a cada utente demorar uma semi-eternidade. A maioria dos esperantes eram idosos.
Confesso que sou um bocado apressado; não via utilidade em estar à espera esse tempo indeterminado. Por isso desisti. Sem me considerar mais do que os outros e sem acreditar que os idosos e demais utentes estimassem mais do que eu tal espera, mas não sem admirar a paciência dessas pessoas. Todavia, não sou capaz de conciliar um sentimento de repúdio por as pessoas serem tratadas assim. Os idosos não têm de esperar, não têm de ter, como única esperança, de passar tempos indeterminados de espera em postos médicos para marcar uma consulta e outros tantos para a ter (pois é-se atendido por ordem de chegada e de inscrição para a consulta se possível meia hora antes dela); merecem ainda viver! Merecem mais do que isto! E dei por mim a pensar como não sofrerão aqueles para quem, nos recônditos de Portugal, têm sido retirados, reduzidos, “ajustados” os cuidados de saúde. Como é óbvio, quem pode pode, e vai a uma clínica privada.
Se a lógica, a mais pura, clássica e sã lógica empresarial comandasse efectivamente a gestão do SNS, não haveria, às mentes de quem o pensa e gere, faltar um pensamento elementar: o alvo deve ser a satisfação dos clientes. Qualquer empresário, grande ou pequeno (sou um destes) sabe que tem de fazer chegar o produto ou prestar o serviços ao cliente a horas e em condições decentes, de modo que ele não queira procurar outro fornecedor. Porém, ter “um nível de vida suficiente pare lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar” é o 25.º Direito Humano. Assegurar estas condições, aos cidadãos, a todos, é um ganho civilizacional cuja prossecução é imposta aos Estados como obrigação. Foi uma boa revolução que estas coisas tivessem sido subtraídas à fria lógica da folha de cálculo de balanços e contas de resultado. São ou não, afinal, as pessoas importantes e mais importantes do que os números? Não devem os princípios da gestão empresarial contribuir para a eficiência sem arriscar perder a qualidade e a humanidade, e apenas isso? Serem um meio e não um fim?
Duvido, porém, que o governo que iniciou estas mudanças e que os governos que as têm prosseguido tenham a mínima noção do que é tal lógica empresarial. Ao permitirem, pior, ao promoverem a degradação real do SNS, ao tornarem o acesso aos cuidados de saúde mais penoso, agravar o sofrimento em vez de o debelar, faltam objectivamente à sua obrigação. E o que merece, na pura (e degenerada) lógica empresarialesa, que incumpre? A resposta é fácil. Quem é o primeiro a levantar o dedo?