A cena da declaração pública de Lula após a prisão, que registrou em vídeo, levou-o a imagens de infância e à convicção de que “os intocáveis” não é apenas um título de sucesso do cinema norte-americano, mas uma realidade no Brasil.
O artigo a seguir é de Toni C., escritor premiado, reconhecido como uma das personalidades mais influentes do Brasil em sua área. Entre outras iniciativas, criou a LiteraRua*.
Aqui, ele conta do seu sonho de que todo favelado — como ele no passado — um dia fosse tratado como rei e, no dia 4 de Março, como jornalista, presenciou a cena oposta: um rei (o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) sendo tratado como um favelado pela polícia.
“Cada vez mais fazemos arte que imita a realidade enquanto a vida vai virando nossa grande ficção.” (Toni C.)
“Imagina a cena! Eu não tinha mais de nove anos de idade e meu irmão, uns oito, quando chegamos em casa trazidos por uma viatura. Eu, sem saber ler lábios, via pelo parabrisa do camburão Zé Porva dizendo: “Ih! A puliça pegou us fí di Dona Carlota. Esses nunca mi enganaru.”
Senhor Juiz, antes de seguir com o meu relato sobre o que aconteceu naquele dia, preciso voltar para o futuro para delatar algumas coisas.
Sempre pensei que chegaria um dia em que qualquer favelado teria o mesmo tratamento dispensado a um chefe de Estado. Afinal, todos são manos, todos são humanos, não é mesmo? Pois, acredite, esse dia chegou. Mas veio às avessas, não foi o pobre que virou rei, o morador de rua que ganhou condições dignas, reservada aos maiores líderes.
Vi o presidente sendo tratado como presidiário. Bem cedo naquela sexta-feira (4), quando recebi a notícia de que a polícia estava na casa do ex-presidente, pensei que era só um boato, uma brincadeira dos recalcados.
Parecia mais ação promocional para divulgar a nova temporada do House of Cards. Só que não. Como somos engraçados: cada vez mais fazemos arte que imita a realidade enquanto a vida vai virando nossa grande ficção, feito a revista com depoimento bomba do dia anterior, nenhum dos personagens nem o depoente se reconhecem naquele roteiro.
Mas o que quero delatar, senhor Juiz, é o que veio a seguir. Por ofício, algumas horas depois de sua prisão eu estive cara a cara com o réu. Estava ali, se acotovelando entre os profissionais da imprensa para a coletiva. “Ninguém é intocável nesse país” as hienas riem, gorjeiam, em pegadinhas e blefes.
É por isso que decidi delatar, não sou X-9 não, doutor, mas quero apontar quem são os intocáveis, senhor juiz, para que vossa excelência faça valer a força da lei e emita ordem de condução coercitiva imediatamente a cada um.
Os Intocáveis
O primeiro dos intocáveis, é uma pessoa perigosíssima. Esse cidadão simplesmente vendeu a Petrobras. Isso, agora precisa entregar. Não se deixe levar pela aparência delicada. De tão sensível chegou a fazer tomografia ao ser atingido por uma bolinha de papel. De todos os presidenciáveis é o que mais coleciona processos. Já ouviu falar no caso da Pasta Rosa? A Lava Jato, com todo respeito senhor, é peixe pequeno perto desse escândalo.
Mas eram outros tempos, o engavetador geral era o Promotor. Dizem que ele deve ter parte com o coisa ruim, seu gabinete mal assombrado é habitado por horripilantes funcionários… fantaaaaasmas!
Outro intocável é um fanfarrão. Gosta de balada, dirige embriagado e foi o melhor governador de Minas do Leblon. De tão bom, criou um aeroporto para o tio. Só que ele é um menino desobediente e não gosta de ouvir o seu avô. Por não saber perder, é o que tem gerado toda essa bagunça, quanto pior, melhor. É o mais citado na operação que o senhor chefia, é o mais chato, não é religioso mas é o que ficava com um terço. Esqueça essa de imunidade, pra quem sequestra o maior líder sindical que a humanidade já produziu, pegar o fanfarrão será fichinha.
O próximo intocável jurou que não tinha contas na Suíça. Então veio a justiça suíça, apresentou a conta e desmascarou o mentiroso, delatado por cobrar propina. Sobrou para ele pedir a cabeça da presidenta pra dele não ir primeiro. Pra se safar da cassação até assinatura falsa forjou.
O outro intocável faz pose de gente séria. Mas o rombo na construção do Metrô foi tão grande que a cratera na Estação Pinheiros engoliu um ônibus escolar, foram sete mortos e nenhuma punição. Ele deve ter algum trauma com os tempos de escola, porque gosta de bater em professor, fechar salas de aula e os estudantes responderam com ocupação. Pra descontar ele devorou o dinheiro da merenda da molecada todinha. (leia mais)
Irônico é que as torneiras estavam secas e a televisão não cansava de vazar, a tal da Lava Jato, e eu me perguntando: sem água vai lavar como?
Esse é outro intocável, a emissora de TV que te premiou sonega, fala do triplex que o ex-presidente não tem pra esconder o seu em Paraty cravado em área de reserva ambiental. Vê se pode!? Essa TV pensa que é dona da verdade e da liberdade. Editou o debate e enfiou goela abaixo o Caçador de Marajás.
Ontem denunciava Pedaladas Fiscais, hoje o Pedalinho. Agora posa de vítima, ui, jogaram um ovo no ovo que a ditadura botou.
Não vou tomar mais seu tempo, doutor.
Esse último intocável é fácil de achar, ele também já foi presidente. Nossa, dias difíceis aqueles, talvez o senhor tenha perdido alguma coisa dos fatos ocorridos porque nesse período o senhor estava nos Estados Unidos, dando duro, estudando.
Então eu vou te contar, esse cara roubou a Vale e isso já seria um grande crime, a consequência é o crime ambiental da empresa que fabrica lama. E eu tenho provas senhor, são fotos de satélite, dá pra ver direitinho a mancha invadindo o oceano, milhares de vítimas. Tá certo, também concordo, precisamos dar a ele ampla defesa, ele também é humano. Seu caso fora do casamento é uma demonstração, não temos nada a ver com a vida íntima de políticos.
Só quando o cidadão é presidente e utiliza sua influência para exilar a amante com filho na Europa, não é doutor? Afinal, verdade seja dita, ele nunca deixou faltar pensão, pagou direitinho por uma empresa de vendas nos aeroportos. Depois de assumir que o filho legitimamente não é seu, deu um apartamento em Barcelona pro filhão, pai é quem cria. Tá achando que é fácil desembolsar 200 mil euros assim à vista com o real desvalorizado. Nem vou dizer que enquanto presidente ele quebrou o país três vezes, ninguém é perfeito, ele quebrou, mas foi correndo ao FMI e mandou arrumar.
Ser mau presidente não é crime, comprar a reeleição e evasão de divisas para paraíso fiscal, é.
Rápido. Expeça mandato preventivo porque esse homem pode fugir a qualquer momento para seu apartamento em Paris. Aliás, o senhor já viu professor aposentado ter apartamento de luxo na Avenida Fouch?
Quando a gente participa de uma página da história mesmo como testemunha, ou coadjuvante, a gente sente o grande poder que isso tem.
Tenho certeza que você sabe bem do que eu estou falando. Foi isso que senti naquela sexta, quando o plano de levar o sapo barbudo para Curitiba fracassou. O Nine Fingers escapou das mãos limpas. O procurador quer prender o presidente sob a acusação de ele ter aparecido diante das câmeras falando de cabeça erguida. Ora, senhor juiz, se o senhor gostaria de ouvi-lo pessoalmente, imagina as pessoas em suas casas, seus eleitores, gente que fez de um torneiro o maior político do século 21.
Nos tempos de escola um professor dizia que minha opinião não valia, porque eu era petista. Nunca fui petista e minha opinião, bom é apenas uma opinião.
Conforme prometi, relato que eu, aos nove anos, fui trazido para casa por policiais quando me perdi de meu pai no centro da cidade. A solução que meu irmão sugeriu foi informar aos policiais que éramos dois meninos perdidos e eles nos levaram pra casa. Mas nem tudo que parece, é.
Anos depois o rap abriu meus olhos para o modus operandi de maus policiais e pude perceber também o quão tendencioso e nocivo é a televisão. Assisti o senhor no telejornal, senhor juiz, o senhor dizia que não tem simpatia partidária, que sua profissão não permite ter preferências e opção. Justiça não é massacrar alguém até que essa pessoa confesse algo enquanto com outra mão se afaga outros pegos em fragrante.
Justiça é tratar o apreciador de vinhos do mesmo jeito que se trata aquele que bebe cerveja ou o que sofre com a falta d’água.
O restante é golpe.”
*Mais sobre o autor:
Toni C. é autor do romance “O Hip-Hop Está Morto!” – A História do Hip-Hop no Brasil, organizador dos livros #PoucasPalavras de Renan_Inquérito, Um Sonho de Periferia, Hip-Hop a Lápis e Literatura do Oprimido e colaborador da revista Rap Nacional.
Social: Secretário de cultura da Nação Hip-Hop Brasil e da ORPAS – Obras Recreativas Profissionais, Artísticas e Sociais.
Audiovisual: Diretor do documentário É Tudo Nosso! O Hip-Hop Fazendo História. Editor da TV Vermelho e pesquisador do programa Estação Periferia – TV Brasil.
Prêmios:
Ganhador do prêmio Cooperifa, recebeu Menção Honrosa pela Câmara de Marília.
É reconhecido como uma das pessoas mais influentes da cultura brasileira, através dos prêmios Tuxáua e Escola Viva, pelo Ministério da Cultura.
Foi congratulado pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul com a Medalha Comemorativa da 53ª Legislatura do Estado.
Bibliografia Completa:
Antologias Hip-Hop a Lápis – O livro (2005)
Hip-Hop a Lápis 2 – Literatura do Oprimido (2010)
Um Sonho de Periferia (2011)
Romance “O Hip-Hop Está Morto!” – A História do Hip-Hop no Brasil (2012)
Biografia Um Bom Lugar – Biografia Oficial de Mauro Mateus dos Santos – Sabotage (2013)
Prefácio e comentários Colecionador de Pedras – Sérgio Vaz (2006)
Trajetória de Um Guerreiro – DJ Raffa (2008)
Rap Dez – O Primeiro rapper dos Quadrinhos -Marcio Baraldi (2011)
Do Conto à Poesia – Alessandro Buzo (2011)
#PoucasPalavras – @RENAN_INQUERITO (2011)
Nota: Os autores escrevem em português do Brasil
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