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Segunda-feira, Março 3, 2025

A Rebelião das Massas

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Ortega y Gasset: Rebelião das Massas

O livro de Ortega y Gasset é de 1930 e reflecte sobre a irrupção das massas (o “homem-massa”) na política num tempo onde o populismo e as ditaduras triunfavam – Espanha (Primo di Rivera – 1923-1930), Portugal (1926), Itália (Mussolini, 1922), Alemanha (Hitler, 1933). A Grande Guerra e a fragilidade da política de marca liberal abriram a clareira por onde irrompeu o populismo, as ditaduras e a massificação da política. Há um belo livro de François Furet (“Le Passé d’une Illusion”, Paris, 1995) que dá conta disso. Estes populismos floresceram no tempo das grandes narrativas ideológicas e em tempo de crise das instituições liberais. E os movimentos que exprimiram a rebelião das massas eram todos movimentos anti-sistema, carreando para a política a emoção, o pathos, o irracional. À esquerda e à direita. E esse foi um tempo de transição. Guerras e ditaduras que dariam lugar, depois, a um novo paradigma, na segunda metade do século XX. E a televisão ocupou nisso um lugar muito especial. De Eisenhower a Donald Trump.

Os Derrotados

Estas foram eleições muito significativas, também pela qualidade dos derrotados. Vejamos. Foi derrotado Barack Obama e o significado histórico da eleição de um Presidente negro que, ainda por cima, fez dois bons mandatos. Foram também derrotados todos aqueles que esperavam um novo salto em frente (agora de género) com a eleição de uma mulher para a Presidência. Foi derrotado o establishment político de Washington (a elite democrata e uma parte consistente da elite republicana que abandonou Trump).

Foi derrotado o establishment mediático, capitaneado pelo “New York Times”, que se posicionou esmagadoramente por Hillary Clinton. Foram derrotados os institutos de sondagens, que previam a vitória da candidata democrata. Fomos derrotados todos os que não acreditávamos que Donald Trump pudesse vir a ser eleito Presidente dos USA!

Trump e Berlusconi

O personagem não é assim tão atípico como pode parecer à primeira vista. Há modelos. E o que vem de imediato à mente é o de Silvio Berlusconi. As semelhanças são muitas: na riqueza (e nas dificuldades financeiras e empresariais, claras na história de um e do outro), no imobiliário (Berlusconi começa pela construção imobiliária em Milão e ali mesmo lança o seu projecto televisivo de sucesso), na televisão (Trump torna-se famoso pelo programa televisivo “The Apprentice”), pelas características pessoais (impulsivos, vivazes, narcísicos, de palavra fácil e ligeira, volúveis), pela relação com as mulheres (os escândalos são conhecidos), pelo discurso anti-sistema (Berlusconi referia-se à classe política como “politicanti senza mestiere” e Trump diz dela que enganou os americanos), pela aproximação à política em chave populístico-carismática e pela utopia do “Miracolo Italiano” e do “American Dream”! Não é coisa pouca. E Berlusconi esteve em alta na política italiana quase 20 anos. Nos USA, o limite é oito anos, para o bem e para o mal!

A história de ambos é, de facto, muito parecida e o contexto em que surgiram também. No caso de Berlusconi, o sistema político italiano tradicional ruíra. No caso de Trump, é a política convencional que, hoje, se encontra em estado comatoso!

Uma Presidência forte?

Assistimos a uma ampla derrota dos democratas: para a Casa Branca, para o Senado, para a Câmara dos Representantes e para a Supreme Court (direito de nomeação do Presidente, com confirmação do Senado). Uma derrota em toda a linha, depois de uma Presidência interessante como a de Obama. Como se explica? Somente pela fraca prestação de Hillary? Não! Mas assistimos também, em virtude dos resultados e das características pessoais do novo Presidente, à emergência de uma liderança forte que baralhará o jogo de forças no establishment republicano, enfraquecido internamente com a vitória de Trump. Ou seja, o novo Presidente tem condições para não funcionar como simples “longa manus” dos poderes instalados, promovendo políticas que se inspirem no seu rosto e na sua narrativa. À partida, estamos perante uma presidência forte que terá, por um lado, de se confirmar perante a cidadania, respondendo às expectativas criadas, e, por outro, para o conseguir, não provocar demasiadas resistências num sistema, sobretudo no Congresso, que tem complexas exigências que podem condicionar fortemente a acção do próprio Presidente (ideia presente no discurso de vitória).

A Imprensa

Percorrendo a imprensa internacional à procura de manchetes sobre a vitória de Trump, encontramos com frequência a palavra “shock” ou, então, “stun(ning)”,  em várias versões. Cito, a título de exemplo, o “New York Times” – um dos grandes derrotados destas eleições (veja-se o meu artigo aqui publicado com o título “O susto e a legítima defesa”) – numa manchete que diz tudo: decepção chocante pelo modo como um outsider capturou o descontentamento dos eleitores. Para dizer, depois, noutro lugar da primeira página: “Donald J. Trump was elected in a stunning culmination of an explosive, populist and polarizing campaign”. Ou “The New Yorker”: “An American Tragedy”! Está tudo dito. E creio que as palavras choque ou espanto traduzem bem esse sentimento difuso da generalidade das pessoas. E talvez tenha sido por isso mesmo que Trump fez um discurso de vitória tão cauteloso ou até mesmo amistoso.

A Rebelião das Massas

Mas o que creio dever sublinhar, nesta ocasião, é mesmo as ideias de “rebelião das massas” e de “populismo”. Parece que os tempos as anunciam. E não só nos Estados Unidos. Também na Europa. Na Inglaterra (com o BREXIT, à revelia do sentimento dominante no Parlamento), na França (com a extrema direita em alta), na Alemanha (com Merkel em dificuldades e AfD, partido de extrema direita, também em alta, já com cerca de 12.5 pontos na média das últimas seis sondagens),  em Itália (com o neopopulista M5S a preparar-se para disputar a vitória nas eleições legislativas de 2018). Estes fenómenos estão ligados:

  1. à incapacidade de o sistema responder às expectativas dos cidadãos;
  2. à rejeição do “outro” (neste caso, refugiados e imigrantes);
  3. à ameaça externa;
  4. à força sedutora de discursos populistas e de líderes carismáticos capazes de dar voz ao sentimento popular.

Com Berlusconi, em Itália, foi o encantamento com um “Miracolo Italiano”. Com Trump é o encantamento com “The American Dream”. Ambos, de algum modo, parece interpretarem e representarem pessoalmente essa “autobiografia da nação” de que falava o velho mestre Bobbio, referindo-se a Silvio Berlusconi, o “ungido do Senhor”. Empresários de sucesso que, numa missão grandiosa, deixam a comodidade das suas vidas empresariais para emprestar à política a sua visão histórica de futuro, contra os incompetentes de serviço, esses “politiqueiros sem profissão”. Seja em Roma seja em Washington! É uma mistura explosiva e eficaz para produzir viragens radicais ou, então, e é o mais comum, imensos “bluffs”!

O Futuro

No discurso de vitória Trump pessoalizou muito, referiu muitas pessoas concretas. Talvez para humanizar a sua narrativa, deixar claro que a política pertence às pessoas e não aos burocratas cinzentos de Washington. E apresentou-se com um discurso pacificador e unificador de alguém que quer “reconstruir o País”, apoiado num  movimento que inclui todas as raças e religiões e que, nas palavras de Trump, se vai prolongar no tempo, para além da campanha eleitoral. Cheira a sinal dado ao establishment, em particular àqueles que até queriam que ele, já no fim, abandonasse a corrida à Casa Branca. Por outro lado, esta ideia de reconstrução alude, pela negativa, à ideia de que antes terá passado pela América, que urge reconstruir, um tufão político demolidor. Terá sido o ObamaCare/ACA, de Obama, que ele anunciou querer desmantelar? Ou, mais em geral, o domínio do establishment político que tem governado os USA e que até permitiu que acontecesse a famosa crise do subprime, com as devastadoras consequências que iria ter em todo o mundo?

Mais do que fazer futurologia, o que interessa neste momento, e eu acenava a isso no final do artigo que aqui publiquei ontem, é evidenciar que o mundo está a mudar a grande velocidade, que as fórmulas políticas tradicionais se estão a esgotar e que o velho pragmatismo político que justificava a inacção e a falta de visão da classe política entrou definitivamente em crise. Sei uma coisa: não é possível continuar a governar os países com modelos que já deixaram definitivamente de responder às profundas mudanças estruturais em curso. Mudanças que, afinal, já nem sequer são assim tão difíceis de ver. E também estou a pensar em Portugal!

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