Na passada 6ª feira, 18 de Maio, realizou-se em Lisboa um Congresso Nacional da Insolvência e Recuperação de Empresas sob o tema “A recuperação no quadro do CIRE: realidade ou utopia?”, muito bem organizado e conduzido pelo advogado Paulo Valério, que nele anunciou a futura constituição de uma Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação, que não sei se admitirá economistas.
Durante alguns anos acompanhei a celebração de encontros deste tipo, então promovidos por uma das associações de gestores judiciais, analisei a evolução legislativa, em que no Congresso houve que distinguisse três fases a) até 2004, paradigma da recuperação (DL 177/86, CPEREF de 1993) b) 2004 a 2012, paradigma da liquidação (CIRE inicial de 2004) c) 2012 até agora, paradigma da recuperação por influência da troika (revisão do CIRE, Revitalizar, PER, SIREVE, Fundos, Capitalizar, RERE, Conversão de Créditos em Capital, etc.), divulguei no meu blog pessoal obras de autores portugueses sobre recuperação de empresas.
Gostei de revisitar este ambiente, em que um participante está especialmente atento às comunicações dos seus conhecidos ou dos profissionais mais prestigiados, e assim destaco aqui, sem desprimor para as restantes, as intervenções de Ana Filipa da Conceição, doutorada em Direito, Professora Adjunta do IP Leiria e membro do Observatório da Justiça do CES, sobre a Regulamentação Europeia da Insolvência, do Administrador Judicial Jorge Calvete sobre a prioridade à venda de empresas / estabelecimentos em processo de liquidação, de José António Mota Gomes, quadro do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social neste momento membro da direcção da CAAJ, que acompanha a actividade dos administradores judiciais e de Jesuíno Alcântara Martins, ex-quadro da DGCI / Autoridade Tributária, especialista em contencioso tributário e Professor Adjunto do ISCAL , cuja comunicação foi uma verdadeira pedrada no charco.
“Déja vu”
Sem desvalorizar a sinceridade dos esforços – no ciclo de Pedro Passos Coelho e no actual – que levaram respectivamente à aprovação do Revitalizar e do Capitalizar e dos respectivos instrumentos, Jesuíno Martins explicou que muito desse esforço apenas resulta na criação de novas siglas, uma vez que no final da década de 1990 a roda que agora se procura reinventar já existia, designadamente – e amplio aqui os exemplos do orador – com a desjudicialização dos processos de recuperação através da instituição do Procedimento Extrajudicial de Conciliação, a prioridade à venda de estabelecimentos com transmissão dos postos de trabalho, a previsão da aprovação de planos prestacionais por parte dos credores públicos com ou sem exigência de garantias, conjugados com a redução de juros até zero em processos de recuperação desde que respeitado o princípio de equiparação de renúncias entre credores públicos e privados, a dação em pagamento, a conversão de créditos em capital, a criação de um Sistema de Incentivos à Revitalização e Modernização Empresarial, a instituição de Fundos de apoio, os benefícios fiscais às medidas de consolidação financeira e reestruturação empresarial.
Quanto à ingente questão da coordenação de credores públicos, que nos últimos anos aparece como promessa em todos os discursos, em Resoluções de Conselhos de Ministros e até em Lei, com a promessa de que seria criado por Decreto-Lei (!) um “Balcão Único” (?), Jesuíno Martins referiu, sem dar pormenores, que essa coordenação existira entre 1996 e 2002, manifestou a esperança que um novo governo ou novos ministros não reiniciem todos estes processos e apelou à preservação da memória das organizações, tendo sido muito aplaudido.
O chamado Síndrome NIH (Not Invented Here) é de facto muitas vezes citado a propósito do frequente RESET no desenho dos programas de intervenção pública mas ainda não se descobriu a vacina.
Uma experiência de coordenação informal bem sucedida
O facto é que sem lei, decreto-lei, resolução ou despacho que o determinasse, funcionou durante três anos judiciais – 1996 a 1999 – um esquema de coordenação entre equipas técnicas do Ministério das Finanças e do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social assente na realização de reuniões a nível técnico todas as quartas feiras de manhã, coordenando-se as posições a apresentar em assembleias de credores (as quais até 1998 foram mesmo formalizadas por despacho conjunto dos secretários de Estado envolvidos), numa estratégia que permitiu definir atempadamente posições, reunir direitos de voto e até, a partir de certa altura, coordenar reacções contra deliberações que lesassem os interesses dos credores públicos.
Embora a legislação aplicável não fosse totalmente coincidente – ainda que o Ministério das Finanças em diversos momentos tenha procurado consagrar soluções já em uso na Segurança Social (regimes prestacionais e de redução de juros, hipotecas voluntárias e hipotecas legais) – e o esforço técnico na análise de viabilidade das empresas e cálculo das renúncias implícitas nas condições de pagamento fosse assegurado no essencial pela equipa da Segurança Social, foram de forma geral concedidas as melhores condições que a lei permitia dentro de uma estratégia partilhada que permitiu isolar as empresas incumpridoras ou que vinham já de anteriores processos de recuperação. Os gestores judiciais encontraram no IGFSS um “balcão único” que lhes permitiu dialogar com os credores públicos no seu conjunto e os sectores do Governo de onde era mais frequente surgirem “cunhas” ficaram momentaneamente desconcertados e sem terem o pretexto da passividade e da descoordenação dos credores públicos para lhes imporem soluções.
No final de 1997, princípio de 1998, a então Direcção-Geral dos Impostos e o Instituto de Gestão Financeira realizaram mesmo reuniões distrito a distrito, envolvendo as respectivas estruturas desconcentradas, para identificar os incumpridores crónicos e preparar medidas que pudessem levar à mudança de titulares e inclusive à sua eliminação do tecido empresarial. A Segurança Social começou a votar falências. Tal como as “reuniões das 4 ªas feiras” estas reuniões não vieram nos jornais nem chegaram ao núcleo político do Governo. O Ministério da Economia de Pina Moura que a partir de 1998 adoptou como estratégia de intervenção o apoio à compra de empresas más por empresas boas veio reforçar a onda.
Quem olhe apenas para aspectos jurídico-formais pode pensar que foi em 2004 com a aprovação do CIRE que se verificou uma alteração de paradigma. No entanto a própria revisão do CPEREF em finais de 1998, concertada entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Justiça, prefigura algumas soluções consagradas em 2004, e, mais importante, muitas empresas cujas dificuldades se arrastavam desde 1976 encontraram nesta altura o fim da linha.
O que se pretende, na actualidade, com o “balcão único”?
Desligado da intervenção nestes processos desde o momento em que, com a saída do Ministro António de Sousa Franco em 1999, findou a qualidade de Conselheiro Técnico para a coordenação interdepartamental nesta área, a minha percepção é de que do lado da Administração Fiscal houve falta de vontade de estudar, e por maioria de razão, aplicar, a legislação criada, e do lado da Segurança Social houve lugar à definição de políticas internas que restringiram a utilização dos instrumentos legalmente disponíveis. Em geral os serviços públicos detestam fazer a análise concreta de situações concretas e lidar com combinações de instrumentos e com graus de flexibilidade na utilização de cada instrumento.
Esta passividade reabriu caminho para os abusos dos políticos. O terem estes proibido os credores públicos (só os públicos) de exigirem garantias para os planos prestacionais aprovados e de imporem a substituição de administradores responsáveis pelo incumprimento de obrigações tributárias e contributivas mostra que se encaram soluções que não são inspiradas por genuínas preocupações de recuperação. E sendo positivo que os serviços já estejam envolvidos em reuniões informais uma vez por mês, conforme foi informado no Congresso, palpita-me que vem aí legislação por encomenda.
A função de um “balcão único” será a de carimbar “na hora” soluções obtidas noutras sedes? Não podemos excluir que assim seja.
Recordo a propósito o artigo que publiquei em 28-2-2018 no Jornal Tornado “Transmissão de estabelecimentos: um entendimento limitado” Jorge Calvete explicou aliás no Congresso que os casos de verdadeira recuperação têm sido os da venda de empresa ou estabelecimento com mudança de titulares.
Foi particularmente divertido ficar a saber que, depois de um aceso debate nos anos 1990 ter levado a fixar em 7 o número de empresas que poderiam ser acompanhadas por um gestor judicial (a chamada “lei Oliveira da Silva”) , a actual lei já não impõe limites.
D-Lei 316/98, que deu sequência à proposta de instituição de um “Processo Administrativo de Recuperação de Empresas” apoiada pelo GACRE – Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas, extinto no início daquele ano.
Já prevista na Medida “Reconstituição Empresarial” do CPEREF mas expressamente admitida para o caso de falência na revisão deste aprovada pelo D-Lei 315/98.
Alterações ao CPT de 1997 e Lei Geral Tributária de 1998.
D-Lei 73/99.
RCM 40/98. Almeida Henriques, que criou o Revitalizar, deveria ter pago direitos de autor a Pina Moura, que criou o SIRME …
Tenho bem presentes os nomes daqueles que mesmo assim tentaram, quando o tentaram e o que pretendiam .
Embora tenha tido em 2008 e 2009 um breve contacto profissional com esta problemática.
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