A vertente digital da nossa realidade encontra-se em expansão. O mundo virtual torna-se, cada vez mais, parte do nosso mundo e as redes sociais afirmam-se como responsáveis pela ampliação do espaço público e dos debates e partilhas aí concretizados. Deste modo, podemos afirmar que a Internet e as redes sociais permitem o alargamento da cidadania, tornando-a mais democrática e inclusiva, criando um espaço público que apresenta contornos verdadeiramente cosmopolitas.
Contudo, estas enormes potencialidades estão associadas a ameaças igualmente gigantescas, dos quais passo a salientar apenas algumas. Antes de mais, o facto de todos (quase todos) poderem ter voz permite que se propaguem ideias de senso comum, ideias falsas e todo o tipo de vulgaridades. Estas apreciações ligeiras sobre os acontecimentos do mundo e sobre a vida humana em geral disseminam-se como se fossem grande “verdades”, arrastam seguidores e “likes”, fortalecendo a cultura da banalidade e do lugar-comum. Os seus autores e os seus replicadores assumem que tais “comentários” possuem valor igual a tudo o que resultou de reflexão e de investigação. Chega-se assim à nova tendência que é o “achismo”, em que todos se arvoram o direito de “acharem” e cada um considera a sua opinião el plano de igualdade ao de qualquer tratado científico ou filosófico – o que resta é relativismo absoluto e extremo, a substituir o conhecimento fundamentado. E o pior é que, na sequência deste enclausuramento na opinião pessoal, se inviabiliza o diálogo e a abertura a outras e diferentes perspectivas. Portanto, o que aparentemente parecia facilitador da ampliação do debate democrático torna-se o seu maior impedimento. Como se o subjectivismo e o emotivismo extremos pudessem dispensar qualquer contribuição de racionalidade dialógica.
Ao mesmo tempo, constatamos nas redes sociais, por exemplo, no facebook, a propagação do “discurso do ódio”. Suportando-se numa total amnésia histórica, numa ignorância tremenda sobre os mecanismos sociais, grupos e indivíduos de extrema-direita exploram medos, inseguranças e a pouca informação da opinião pública diabolizando tudo o que apresente algum traço de humanismo e se afirme como defensor de direitos. Apresentam como solução a violência, o regresso da lei “olho por olho”, chegam a ameaçar e, inclusive, a incitar à morte. Usam a estratégia da difamação pessoal e da agressividade mais feroz. Neste momento, o “discurso do ódio” é galopante e as redes sociais, que se tornaram o meio mais eficaz para a propagação de patologias sociais como o racismo, a xenofobia, a homofobia, a misoginia e outras, funcionam como meio de destruição e de difusão da intolerância face aos “outros”, considerados inferiores. Na Europa e nos Estados Unidos, o “ovo da serpente” tem, uma vez mais, ninhos acolhedores.
Muitos exemplos poderiam atestar esta constatação. Marielle Franco, a activista brasileira recentemente morta ou Taner Kaliç, presidente da Amnistia na Turquia, preso há mais de 300 dias e outros activistas dos Direitos Humanos ameaçados, difamados e mortos por defenderem os direitos dos outros, falam por si e são bem indicativos do retrocesso histórico a que assistimos.
E se é verdade que a globalização continha em si a esperança do cosmopolitismo e de uma inclusão cada vez mais alargada, verificamos que coexiste com novos focos de exclusão que se caracterizam por uma violência que pensávamos (ilusoriamente) ter erradicado. A inteligência e a racionalidade tornaram-se dispensáveis face ao primarismo que impera nas redes sociais. Também aqui, como noutros contextos, se erguem muros e irrompe a brutalidade da força que anula o respeito e o reconhecimento recíproco.
Neste sentido, parece-me inegável que, sendo testemunhas e protagonistas de uma ágora que é agora do tamanho do planeta, é nossa tarefa resistir, salvaguardando a possibilidade de um futuro para a humanidade, para a casa comum e para o viver comum. A cidadania tem que ser também digital, isto é, nas redes sociais é preciso contrapor ao “discurso do ódio” o discurso da dignidade de todos os seres humanos e da paz e do diálogo como instrumentos de resolução de conflitos. É preciso, também, voltar a discutir a liberdade de expressão e os seus limites.
A Agenda Digital para a Europa (2020) é um bom começo, mas deveria alargar o seu âmbito: não se referir apenas à segurança de um mercado único digital, ao acesso rápido à Internet e à melhoria da literacia digital mas incluir também outros domínios da cidadania e dos padrões éticos construídos, nas nossas sociedades, pelo menos desde a segunda metade do século XX.