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João de Sousa

Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Refeiçoando com Sócrates

João de Sousa
João de Sousa
Jornalista, Director do Jornal Tornado

O convite era circunspecto. Em tom enxuto, o curto texto dizia ao que vinha, porquê, para quê e, sobretudo, para quem. Convidava os principais Órgãos de Comunicação Social para um almoço, em jeito de balanço, a pretexto do início das férias judiciais, do falhanço de mais um prazo na dedução de acusação pelo MP e da justa indignação do cidadão José Sócrates a esse propósito.

À guisa de introdução

Foi deste modo que o interpretei e decidi comparecer. Há limites, deveria haver, para a inoperância e desrespeito pela Lei e pela Constituição por parte do poder judicial e do Juiz encarregado de assegurar o respeito pelos Direitos, Liberdades e Garantias constitucionalmente estabelecidos para qualquer cidadão.

Como não conhecia pessoalmente o Engenheiro Sócrates, mas quiçá influenciado pela imagem transmitida pelos OCS do sistema, preparei-me para o embate como quem vai para um cenário de guerra. Na ausência de uniforme e de outros instrumentos bélicos levei comigo um Zippo, que sabia ser parte do “equipamento” standard de todos os militares do Tio Sam.

Cheguei adiantado. Tomei o cuidado de avisar previamente as embaixadas dos aliados e o ministro da tutela não fosse o diabo tecê-las. Afinal era a primeira vez que almoçava – em local público, é certo – com um notório “celerado”, perseguido pela Justiça, e, imaginava eu, acolitado por temíveis sequazes.

Quando cheguei ao teatro de operações dei conta de um pequeno grupo: um comité de boas vindas, pensei, até me dar conta das câmaras, microfones e outros apetrechos característicos da minha profissão. Deviam ser os meus “colegas”, concluí. E estuguei o passo em direcção ao balcão de check in do evento. Com a desenvoltura de anos de experiência, recordemos que levava um Zippo, dirigi-me corajosamente às  duas senhoras de sorriso simpático – simulado, decerto – que estranharam a minha presença ali mas rapidamente se ajustaram e resolveram o caso “inédito” fornecendo-me uma senha azul onde escreveram o nome do meu Jornal.

Desconfiado, esperei pela piéce de résistance do almoço, a chegada do protagonista e razão última de estarmos todos ali. Antecipei a sua chegada, escoltado por quatro sujeitos altos e espadaúdos, tamanho guarda-fatos do Barros&Barros. Foi com algum desapontamento, confesso, que o vi chegar, em passo tranquilo – deteve-se para apertar um sapato – e sem qualquer segurança.

Foi então que percebi que aquelas pessoas que o aguardavam junto da escada que dava acesso ao restaurante não eram  afinal um comité de boas-vindas mas, pelo contrário, se tratava de uma “espera”, à boa maneira marialva, impregnada da coragem que “o grupo” assegurava. Desci as escadas quando me dei conta de que “a coisa” afinal ia acontecer ali mesmo e não durante o almoço. No ar era perceptível um ambiente hostil de cortar à faca. Não era uma conferência de imprensa nem sequer a recolha de uma tomada de posição. Tratava-se mesmo de um inquérito, tipo 2.º grau, ao estilo Erle Stanley Gardner, em tom agressivo e intimidador.

A “conferência de imprensa”

De novo José Sócrates tinha a dizer o seguinte: que o prazo para ser acusado tinha sido procrastinado mais uma vez – desta o Ministério Público nem se deu à maçada de apresentar qualquer justificação – escudado no Despacho da Sra. Procuradora-Geral que atira potencialmente para o Eterno a dedução de acusação ou arquivamento, ao fazer depender este prazo de um elemento impossível de controlar: a resposta à derradeira carta rogatória.

Depois de, com invejável paciência, José Sócrates ter reiterado, pela enésima vez, que nem o Código Penal nem o Código de Processo Penal atribuem qualquer carácter indicativo aos prazos, e que a interpretação da Lei, feita pelo Ministério Público, se trata de facto de um acto legislativo, que lhe está vedado nos Estados de Direito. Vários dos presentes insistiram, vá lá saber-se porquê, na tese do Ministério Público – o sujeito à minha frente parecia um disco riscado repetindo esta ideia peregrina – e a hostilidade, não latente mas patente, tornou-se gritante. Lá perguntei se, tratando-se de um simples cidadão a esta altura, não faria mais sentido – de acordo com o escopo do Jornalismo – escrutinar o terceiro poder e um eventual abuso por parte deste face a um cidadão.

Claro que fui de imediato brindado com vários olhares ameaçadores e um chiste que interpelava a minha presença. Pois cá vai a resposta: eu estava ali a cumprir a função de jornalista, para ouvir o cidadão José Sócrates, descontente com o desrespeito da lei por parte de órgãos do Estado. Os restantes estavam ali para “espremer” o antigo primeiro-ministro a ver se captavam uma  migalha de informação que corroborasse a tese do órgão judicial. O indivíduo era o mesmo, mas os sujeitos jurídicos eram distintos, para mim um “cidadão” e para os restantes um “culpado”. A atitude agreste era evidente, extensível aos restantes convivas do almoço e, a partir desse momento, também a mim. Senti-me lisonjeado. Nunca todo um grupo me tinha odiado em tão pouco tempo com tão modesta provocação.

Nuns casos por manifesta ignorância noutros por evidente rejeição de qualquer tese que ponha em causa a profunda convicção industriosamente formada e sedimentada acerca da culpa deste cidadão, aparentemente destituído de direitos, estava firmemente estabelecida.

José Sócrates trouxe à colação o caso do seu ex-ministro Manuel Pinho, refutando a tese da acusação de que o nome deste lhe teria sido sugerido por Ricardo Salgado, como testemunhou Ricciardi, lembrando que Pinho fazia parte do grupo de economistas da Lapa que já assessoravam o PS muito antes deste ser Governo. Foi inútil. Nem uma nota sobre isto. Sócrates revelou ainda algum desapontamento perante a postura do Governo, e do Partido Socialista, face ao assim designado “GalpGate”, e à saída de três secretários de estado. Ironizou: sendo a Galp patrocinador da Selecção Nacional e tendo fretado um avião para levar convidados a Paris, para valorizar o seu investimento, como deveria ter procedido? Abrir um concurso para todos os portugueses?

Sócrates enfatizou o facto de a partir de agora bastar ao Ministério Público constituir algum governante como arguido para, na prática, o apear das suas funções. Tão evidente conclusão parece ter escapado à sensibilidade político-jurídica dos restantes presentes..

Sócrates expôs claramente o expediente usado pelo MP para interromper a contagem dos prazos: a constituição de novos arguidos. E sublinhou o carácter ilegal e inconstitucional desta prática. Debalde procurará uma linha sobre esta momentosa questão nos OCS presentes.

Enfim… o comité de boas-vindas era afinal um grupo claramente hostil em que o entrevistado já foi julgado e condenado há muito.

O almoço

Presumi que o almoço fazia parte do trabalho. E que qualquer jornalista diligente faria questão de marcar presença espreitando, quiçá, a possibilidade de surpreender alguma conversa reveladora ou uma troca de olhares cúmplice. Nada disso. Fugiram dali a sete pés como se aquelas pessoas tivessem lepra e, como tal, potencial para macular a sua inocência isenta de pecado.

Como me convidaram para um almoço subi as escadas ao lado de Sócrates, procurando ficar tão próximo quanto possível do alvo! Com um ligeiro aceno de cabeça fiz-me convidar para a mesa do protagonista da tarde. Com êxito! E fiquei a aguardar o pior!

Com os meus botões pensei: estou frito! O master mind do crime organizado está rodeado dos seus prosélitos mais impiedosos. Por este andar não chego vivo à sobremesa! Fiquei sentado mesmo em frente ao “chefe” e, estrategicamente, entre duas das perigosas organizadoras do evento. Rezei as que pensava serem as minhas derradeiras preces enquanto olhava em redor temendo ver a cada canto sinistras figuras, capazes de me degolar ao mais pequeno gesto ou palavra imprudente.

Sócrates, sorridente, irradiava confiança e determinação por todos os poros. Beijinhos e mais beijinhos, selfies em barda, muitas senhoras com respeitáveis cabelos brancos, a fazer lembrar a avó de todos nós, vinham cumprimentar o alegado facínora. Ninguém parecia zangado, todos deixavam transparecer uma suave alegria por reencontrar um velho amigo. Debalde procurei com o olhar a previsível guarda pretoriana. Nada. Só senhores e senhoras de ar extremamente afável e pacífico respirando, todavia, resiliência e determinação.

Como novidade fiquei a saber que está para sair um novo livro, já concluído, dedicado à guerra. Ouvi com muita atenção Sócrates discorrer sobre este tema, situando o início da actual situação na invasão do Afeganistão pela então URSS, em 1979. Falava-se de política: fiquei convenientemente escandalizado e cautelosamente lá fui alinhavando umas ideias. Não fui fuzilado, ninguém me decapitou e isso reforçou a confiança para participar na conversa.

Durante o repasto, não espartano mas simples, fiquei a saber da decepção de Sócrates por Costa ter deixado cair os seus secretários de estado por uma razão tão evidentemente fútil e da indignação pelo ataque soez ao ex-ministro Manuel Pinho, baseada numa falsidade.

À política o que é da política, à Justiça o que é da Justiça? José Sócrates é peremptório: a Justiça é um dos fins da Política pelo que este axioma não pode ser acriticamente aceite por pessoas de bem. Dos outros jornalistas… nem sinal!

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