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Terça-feira, Julho 16, 2024

Reforma do sistema político

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Mais do que há trinta anos, o nosso sistema político precisa de reforma, criou indesejáveis cumplicidades, cresceu descontroladamente e é demasiadamente partidarizado, e seria saudável abrir os partidos e deixar a sociedade respirar livremente no sistema político.

Ao fim de 45 anos de democracia forçoso é constatar que a resiliência do nosso sistema político se tem revelado notável. Tivemos naturalmente mudanças, como sejam o fim da tutela militar, o aparecimento de novos protagonistas do regime (se o PRD foi efémero, o Bloco de Esquerda revelou-se mais permanente) e temos agora uma hoste de novos partidos. Estes ocupam no entanto posições secundárias mas, talvez mais importante do que isso, cresceram à custa da erosão dos dois partidos mais excêntricos – o CDS e o PCP – e não dos dois partidos charneira, PS e PSD, que continuam a ocupar um sólido centrão.

  1. Precisamos mesmo de reforma?

Os protagonistas naturalmente mudaram, mais que não fosse pela lei da vida, que levou recentemente o último dos principais rostos do sistema partidário de 1974, mas as persistências são notáveis. No PSD, Sá Carneiro desapareceu em 1980, mas o seu número dois continua a estar presente, mesmo se na linha mediática, e o então Ministro das Finanças fez recentemente prova de vida afirmando-se como figura motora do derrube de Rui Rio. No PS, confesso que nunca vi António Costa de calções, mas fartei-me de ouvir publicamente a história de que foi assim que ele apareceu pela primeira na sede socialista (em contrapartida, lembro-me bem de João Soares e do seu sótão em São Pedro de Alcântara, coberta de alusões ao Grupo Autónomo do PS).

Da Constituinte às legislativas de 2019, o centrão manteve o seu quinhão de votos (na verdade, até o reforçou ligeiramente) e temos portanto uma aristocracia partidária que se manteve e que dá mostras de poder resistir até ao seu Jubileu.

E a reforma do sistema político – que começa naturalmente pela do sistema eleitoral mas não pode ser reduzida a esta – aparece-me hoje como menos premente do que pareceu durante décadas.

Mais do que há trinta anos, o nosso sistema político precisa de reforma, criou indesejáveis cumplicidades, cresceu descontroladamente e é demasiadamente partidarizado, e seria saudável abrir os partidos e deixar a sociedade respirar livremente no sistema político.

Há vários e melhores modelos do que o português (um dos mais fechados das democracias europeias) e que poderão servir conceitos de democracia no sentido consensual de Habermas ou de ‘rejeição de um mau governo’ como visto por Popper, mas teremos que começar por aqui: não é seguro que haja mais vantagens numa visão ou noutra.

E depois o principal problema é que não há bons ou maus sistemas em abstracto, há os que se adaptam melhor ou pior ao sentir de uma nação, ou de um povo e, olhando para o nosso país, estou em crer que as coisas são o que são, porque a generalidade dos portugueses se adapta melhor a essa realidade que a outra.

Posto isto, imprevisivelmente, os portugueses podem mudar rapidamente de opinião, basta para isso que sejam submetidos a um choque que pode vir de muitas direcções umas mais estruturais outras mais conjunturais. As consequências da monumental dívida externa que resulta integralmente do conúbio político-financeiro-mediático do nosso sistema estão neste momento geladas por força das acções dos dois Mários, mas podem explodir a qualquer momento.

E, nem que seja por isso, convém reflectir sobre o assunto e estar pronto a reagir.

  1. Novos partidos

A mudança de sistema político não passa necessariamente pela ascensão de novos partidos, até porque a experiência tem confirmado que os novos partidos tendem a reproduzir de forma ampliada os vícios dos antigos, mas não podemos pôr de lado essa possibilidade.

Quer isto dizer que convém ter em conta os três novos partidos que emergiram em 2019 nas eleições legislativas e ter uma ideia do seu potencial na mudança do nosso quadro político.

Comecemos pelo Livre, partido que se apresentou nestas eleições com uma inovação: a apresentação de alguém que sofre de perturbação de fluência da fala como candidato parlamentar, forma que me parece excelente de afirmar a necessidade de integração também desse grupo de pessoas, depois de se ter pensado em pessoas que sofrem de outro tipo de deficiência.

Posto isto, não há nada no Livre e na candidata eleita que não tenhamos visto já no BE e, creio mesmo, que o Livre acentua todas as disfunções e aberrações importados do que de pior existe no identitarismo que corrói o mundo ocidental.

Temos depois a ‘Iniciativa Liberal’. Fez-se notar por outra inovação que foi a da campanha abertamente negativa, alugando espaços comerciais ao lado dos cartazes do centrão ridicularizando a sua mensagem, por vezes com humor, outras vezes nem tanto.

O que reteve mais a minha atenção foi o ‘Com primos’ que procurava ridicularizar o ‘Cumprimos’ socialista. O que a generalidade de nós não se tinha dado conta é que a Iniciativa Liberal propôs literalmente o que anunciou. As suas listas assentaram não só nos primos mas também nos irmãos, ascendentes e descendentes, cunhados e afilhados, apresentando-se como recordistas do compadrio. Pior, nas redes sociais, os seus aficcionados procuraram justificar o injustificável com a dificuldade em encontrar candidatos.

A privatização da banca como forma de pôr fim ao descalabro das finanças públicas portuguesas é o reverso daquilo que o Bloco de Esquerda tem apesar de tudo o bom senso de não propor (a nacionalização da banca) e serve apenas para nos darmos conta de que estamos perante um programa esdrúxulo que pouco de positivo traz ao debate.

Temos por último o Chega – identificado pela generalidade dos observadores como fascista – e que merece aqui uma especial atenção por três motivos (1) o alinhamento do discurso com muito do que existe com peso na Europa e no mundo (Le Pen, Salvini, Bolsonaro ou mesmo Trump); (2) fazer da reforma do sistema político uma pedra de base do discurso e (3) ter tido mais votos que os dois partidos precedentes.

A irritação popular com o crescimento da máquina política que lhe passa ao lado corporiza-se na ideia de que o problema do sistema se resume a ter políticos a mais. É uma noção que está solidamente implantada e o Chega responde a essa perspectiva, podendo vir a ganhar grande projecção com ela ou, o que é equivalente, levar os partidos do sistema, nomeadamente o PSD de onde o Chega dissidiu, a tomar essas propostas como suas.

Dizer que isso é fascista, apenas serve para cimentar a ideia generalizada de que temos os agentes do sistema agarrados ao tacho e que apelidam de fascista tudo o que ponha esse tacho em causa, servindo esta atitude apenas para caucionar o discurso do Chega.

Não há nada que possa caucionar a ideia de que um regime presidencialista e com menos deputados seja fascista, mas convém naturalmente lembrar aos que nos trazem essas propostas num embrulho do ‘Salazar é que era bom’ que antes sustentar 230 deputados escolhidos e controlados pelo povo que sustentar milhares de informadores da PIDE a controlar o que o povo diz e pensa.

  1. As batalhas do futuro

A única forma de responder a este estado de coisas não é nem defendendo o actual sistema político nem defendendo a importação de outros sistemas a funcionar no mundo, mas sim reflectir em formas novas de responder às solicitações sociais, tendo naturalmente em conta a nossa realidade e o que se passa no resto do mundo.

É verdade que o sistema português é particularmente mais partidarizado e fechado do que a generalidade dos outros ocidentais mas, mesmo nos países onde a democracia é mais sólida e madura, (veja-se o que se passa no Reino Unido ou nos Estados Unidos) o modelo democrático parece estar gasto e a necessitar de reformas.

A nossa democracia está ameaçada quer pelo poder desregrado do dinheiro quer por uma tremenda crise de confiança. A esse propósito, o discurso de Elizabeth Warren, talvez a mais forte candidata à presidência dos EUA, serve-nos de alerta para os desvarios identitários.

Descendente de um autêntico ‘mata-índios’ do século XIX, a senadora e candidata presidencial resolveu invocar uma ascendência nativa sem uma base factual sólida invocação pela qual foi forçada a pedir desculpa. Não se trata de um ‘fait divers’, trata-se de ver até que ponto a sociedade ocidental se envergonha de si mesma e quer vestir a pele de outros.

A questão essencial aqui é que a regra da humanidade até aos nossos dias tem sido a do esmagamento de uns grupos humanos por outros, porque são superiores em guerra, em número ou o que quer que seja.

A ultrapassagem dessa forma de ver as coisas é positiva, mas deixará de o ser se assumirmos como presentes os actos do passado e com isso relativizarmos as barbaridades cometidas por outros no presente.

Confrontar esse perigo é tão ou mais importante do que confrontar as derivas autoritárias, mas acima de tudo, interessa olharmos para o futuro mais do que para o passado.

Temos de pensar a democracia de forma mais referendária, com mais contrapoderes, com mais participação, com mais transparência, e é assim que poderemos imaginar um sistema político mais adaptado à sociedade que queremos ser.


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