Na fase de discussão na especialidade do Orçamento do Estado multiplicam-se de ano para ano as propostas de alteração, que atingem já o número de milhares – 2161 no caso do OE para 2025 (eram 993 no OE para 2019 e 1365 no OE para 2021, números já então tidos por astronómicos) – sendo que quando estão em funções governos minoritários, é comum que estes que se queixam da irresponsabilidade das oposições, ou até dos aliados, que promovem alterações – aumento de despesas ou redução de receitas – que vão agravar os défices previstos na proposta de Lei do Orçamento.
Já abordei as problemáticas subjacentes a estas discussões em 5 de Dezembro de 2018, em artigo intitulado “Todos os caminhos vão dar ao Orçamento do Estado”, em 2 de Dezembro de 2020, em artigo que reforçava a ideia anterior com o título “Orçamento do Estado para 2021 – um novo psicodrama orçamental?”, e em 21 de Abril de 2021 numa óptica um tanto diferente “Reforçar ou flexibilizar a lei travão?”.
Entretanto o Público de 22 de Novembro de 2024 deu conta de que a Unidade de Apoio Técnico Orçamental da Assembleia da República (U.T.A.O.) publicara a 12 desse mês um relatório com um conjunto de 11 recomendações sobre a discussão do Orçamento do Estado, que poderiam ser aproveitadas numa anunciada revisão (mais uma). Deixo aqui o link(i) para o artigo daquele diário como forma de contextualizar algumas das declarações de Rui Baleiras, responsável pela U.T.A.O. no entanto ainda não encontrei o relatório publicado no respectivo site.
Quanto à introdução de novas alterações na Lei de Enquadramento Orçamental, quando ainda não conseguimos concretizar todas as inovações delineadas em 2015, trata-se de um anúncio que não me entusiasma grandemente uma vez que posso dizer com verdade que já contribuí para esse peditório:
- em Abril de 1986 escrevi a partir da minha situação de assistente do Instituto Superior de Gestão, uns Contributos para a Revisão da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado (versão provisória) que enviei a deputados do PSD, PS e PRD(ii);
- em 1999 pertenci ao grupo de trabalho nomeado por António de Sousa Franco com vista à elaboração de uma Proposta de Lei de Enquadramento Orçamental elaborada pelo I Governo Guterres a partir de um anteprojeto elaborado por um grupo coordenado por Jorge Costa Santos, proposta de Lei que não chegou a ser votada- cfr. Reforma da Administração Financeira;
- corria o tempo do II Governo Guterres, tive ocasião de delinear um novo texto de Lei de Enquadramento Orçamental que, apresentado por um dos partidos parlamentares, veio a ser parcialmente acolhido na Lei 91/2001, de 20 de Agosto;
- em 2011 tinha Passos Coelho lançado a ideia de um Orçamento Base Zero e tendo o grupo parlamentar do Bloco de Esquerda apresentado um Projecto de Lei sobre o mesmo tema, publiquei no meu blog pessoal um artigo intitulado “O orçamento base zero e o jardineiro da Universidade de Coimbra”.
Das ideias que se conhecem da U.T.A.O. não acompanho totalmente a preocupação com a presença de “cavaleiros orçamentais” fórmula importada do francês e dos correspondentes “cavaliers budgétaires”. Por um lado na votação do Orçamento federal dos Estados Unidos é comum construir maiorias bipartidárias incluindo no pacote acordado uma série de medidas totalmente estranhas ao processo orçamental. Por outro, em Portugal não existe em rigor nenhuma norma constitucional que interdite esse tipo de prática: definem-se matérias que devem constar dos Orçamentos mas não há nenhuma proibição explícita de inclusão de outras matérias; o nº 3 do Artigo 9º da Lei nº 64/77, de 26 de Agosto (primeira Lei de Enquadramento) tentou disciplinar o âmbito da proposta de lei do Orçamento quanto à vigência das normas: “A proposta de lei referida no nº 1 não poderá conter normas cuja vigência ultrapasse o ano económico a que se refere”, mas esta formulação não sobreviveria à aprovação da Lei de Enquadramento seguinte, ou seja da Lei nº 40/83, de 13 de Dezembro.
É habitual distinguir no articulado das Leis do Orçamento – decorrente das propostas de lei apresentadas ou das alterações na especialidade – “autorizações legislativas” e “medidas directas”.
Sobre as primeiras, e ainda o parlamento apenas votava a Lei do Orçamento e não o Orçamento propriamente dito, o que apenas fez a partir da Revisão Constitucional de 1982, é conhecido um estudo de José Manuel M. Cardoso da Costa intitulado Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento, publicado em 1981 nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro (número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra) e editado em separata em 1982. Resumidamente, Cardoso da Costa defendeu que as autorizações legislativas integradas numa Lei do Orçamento mas ainda não utilizadas integram um programa legislativo aprovado para todo o ano pela Assembleia da República, não caducando com a exoneração do Governo a que foram concedidas (nem com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República). (iii)Esse entendimento viria a ser acolhido em sede de revisão constitucional.
Sobre as “medidas directas”, imediatamente exequíveis, é de referir que quando se traduzam em alterações a diplomas já vigentes, se torna fácil aprovar a adopção de novas redacções, a eliminação de disposições ou a introdução de aditamentos.
Sucedeu posteriormente que no tempo da “troika” a importância da votação do Orçamento do Estado pelo parlamento ainda se reforçou mais:
- as deliberações passaram a incidir sobre todas as receitas e despesas incluídas no perímetro de consolidação da Administração Pública;
- as Leis do Orçamento, que já estavam sujeitas à Lei de Enquadramento Orçamental, lei de valor reforçado, passaram elas próprias a ter valor reforçado.
Para além da blindagem das autorizações legislativas, da facilidade da aprovação de medidas directas, e do reforço do âmbito e do valor vinculativo do Orçamento, factores que reforçam a centralidade deste, tem razão Rui Baleiras quando diz que o Governo e os partidos vêm no recurso ao OE um processo mais expedito, menos transparente e que não obriga a audições das partes, como acontece com o processo legislativo comum da Assembleia da República.
Haverá assim – é a minha opinião – uma hipertrofia do processo do Orçamento e uma desvalorização dos processos democráticos e participativos.
Sendo que temos um Presidente da República que por sua vez hipervaloriza o Orçamento, a ponto de ter forçado eleições quando a proposta de Orçamento do Estado para 2021 foi recusada na generalidade e a Lei de Enquadramento Orçamental apontava para a apresentação de uma nova Proposta, e cujo feito de armas que mais gostava e gosta de recordar dos seus tempos de líder da oposição foi … a abstenção na votação da proposta de Orçamento do seu amigo Guterres.
Rui Baleiras deveria contudo ter consciência de que informalmente “as partes” já se adaptaram à situação. As Finanças ouvem os representantes da banca e dos grandes negócios e os ministérios sectoriais e os grupos parlamentares ouvem os pequenos e médios interesses, incluindo os sindicatos e muitas vezes veiculam as suas propostas na apresentação de alterações na especialidade. A transparência poderia ser certamente melhorada dando um pouco mais de formalidade a essa participação.
Quanto ao risco – já clássico – de que o Orçamento do Estado poder vir a ser “desvirtuado” pela votação na especialidade, mantenho ainda a solução que defendi em 1986 de votação na generalidade de um quadro – síntese da proposta de Orçamento cujos valores, incluindo o do défice, teriam de ser respeitados na especialidade.
Na altura ainda não existia um organismo como a U.T.A.O., criado um lustro depois, que mesmo depois da criação tem levado algum tempo a adquirir capacidade de previsão, e que, felizmente, se vai apoiando em informação fornecida pela Direcção-Geral do Orçamento e outras fontes.
E também fazia parte do “jogo” político que os Governos exagerassem o impacto das medidas votadas pelo Parlamento ou resultantes da acção daqueles a quem sucediam; tal sucedeu com o I Governo Cavaco Silva, que ainda era minoritária, e que aliás, quando encomendou três fragatas se afastou da convenção até aí vigente de as classificar como despesas correntes, registando-as como “investimentos”; voltou a suceder com o I Governo Guterres, quando o Ministro Jorge Coelho começou a falar dos “buracos” que lhe teriam sido deixados pelo PSD, tendo-se calado quando o Ministro das Finanças Sousa Franco retorquiu que isso era linguagem de mineiros ou de cavadores.
Fazia e ainda faz, uma vez que voltou a suceder recentemente quando o actual Ministro das Finanças Miranda Sarmento se voltou a queixar dos buracos que Fernando Medina e o PS lhe teriam deixado e agora fala de excedente.
Isto conduz ao desprestígio das instituições e dificulta a definição de regras para aperfeiçoar o funcionamento do sistema orçamental.
De qualquer forma está implícito na Constituição que, mesmo depois do Orçamento do Estado aprovado é possível reduzir receitas ou aprovar despesas que só tenham impacto em anos seguintes, o que foi feito durante 2024 na Assembleia da República por uma “maioria negativa” , e suscitou um grande alarido que depois se silenciou ao perceber-se que os encargos eram afinal (parece) perfeitamente acomodáveis. E isto apesar de Sousa Franco ter tentado integrar no processo orçamental português o respeito pelas vinculações externas do Orçamento do Estado.
Certamente acabaremos TODOS por voltar a este assunto.
Notas
(i) UTAO propõe limitar número de propostas entregues pelos partidos no OE
(ii) PSD, Alípio Dias; PS, João Cravinho; PRD, Vítor Ávila.
(iii) Este artigo assinou-o Cardoso da Costa enquanto Investigador da Faculdade de Direito de Coimbra. Mais tarde é eleito, ainda assistente eventual, juiz do Tribunal Constitucional, do qual ascende a Presidente. Quando, muitos anos mais tarde, deixa a magistratura, a Faculdade tem de o “promover” a professor catedrático convidado.