A imagem do corpo de Aylan Kurdi, o pequeno sírio de três anos morto em naufrágio no Mediterrâneo, que as ondas depositaram numa praia da Turquia, em Setembro de 2015, ainda está viva na memória de todos.
A comoção foi mundial, contribuindo para chamar à atenção do problema dos refugiados, a chegar em ondas cada vez maiores às fronteiras europeias.
Feita em condições altamente precárias – pequenos barcos superlotados, sem um mínimo de condições de segurança – a travessia do Mediterrâneo já então se tinha tornado uma aventura muito perigosa para os migrantes e um negócio altamente lucrativo para as redes de traficantes que exploram o desespero alheio.
Segundo dados da ACNUR, a agência das Nações Unidas para os refugiados, só nesse ano de 2015, morreram nas diferentes rotas do norte de África para a Europa 3771 pessoas. De então para cá, alguma coisa mudou, mas não o essencial, nem, infelizmente, para melhor. Em 2016, atingiu-se inclusive um número recorde de mortos em naufrágios de refugiados e migrantes – 4600!
UE impreparada e desunida
A União Europeia mostrou-se totalmente impreparada para enfrentar o problema, acabando cada país por decidir sozinho se queria ou não acolher essas pessoas em fuga e em que número. “A desorganização e o sistema de asilo extremamente disfuncional da Europa contribuíram para agravar a crise dos refugiados”, afirmou o então dirigente da ACNUR, António Guterres, hoje secretário-geral das Nações Unidas.
A Alemanha de Merkel chegou a admitir 500 mil migrantes, dizendo que poderia receber anualmente outros tantos. Mas, pressionada interna e externamente, Berlim acabou por recuar, preferindo tentar coordenar esforços a nível europeu. Sem grande resultado, já que vários países do centro e leste do continente – casos da Hungria e da Polónia, por exemplo – se opuseram a uma política unificada, opondo-se à entrada dos migrantes e recusando a atribuição de quotas nesta matéria.
Não espanta por isso que dos 160 mil refugiados propostos acolher pela Comissão Europeia, só uma parte tenha sido até agora efectivamente colocada.
Medidas restritivas
Perante a pouca vontade de vários dos países membros de abrir as portas ao acolhimento, medidas de carácter restritivo foram entretanto adoptadas. Primeiro, a Europa fechou a rota dos Balcãs, provocando um refluxo da onda migratória para a Grécia, onde dezenas de milhar de pessoas ainda aguardam uma decisão sobre o seu destino.
Os europeus assinaram também um controverso acordo com a Turquia, pelo qual Ankara, em troca de ajuda financeira – 6 mil milhões de euros – se compromete a estancar o fluxo migratório que passa pelo país e a receber de volta os migrantes que lhe sejam devolvidos.
A partir daí, intensificou-se o tráfico a partir da Líbia, onde depois do derrube de Kadhafi – patrocinado pelos próprios europeus – ainda reina o caos, com dois governos a disputar supremacia.
Pior crise de sempre
Em termos globais, o problema dos refugiados e migrantes conheceu mesmo, de 2015 para cá, um agravamento. A ACNUR fala de “pior crise de sempre”, com um total de 65,6 milhões de pessoas deslocadas (40,3 milhões de deslocados internos e 25,3 milhões de refugiados) – o número mais elevado desde a Segunda Guerra Mundial.
Desses, mais de metade são crianças ou jovens com menos de 18 anos, muitos dos quais viajam sozinhos. E quem mais ajuda é quem menos pode – os países perto das zonas de conflito como a Turquia e a Jordânia (vizinhos da Síria, cuja guerra “produz” o maior número de refugiados) ou o Paquistão (do lado do Afeganistão (outro centro de conflito permanente).
A Alemanha – que desde o início da crise deu asilo a 669.500 pessoas, é o único país desenvolvido que integra, em oitavo lugar, o top 10 dos países de acolhimento.
Este é o grande paradoxo da situação: 84 por cento dos refugiados encontram-se nos países em desenvolvimento, três dos quais – República Democrática do Congo, Etiópia e Uganda – são mesmo os que se encontram registados na ONU como tendo o menor índice de desenvolvimento humano!
Hostilidade crescente
Vários especialistas argumentam que os refugiados, sendo como são, na sua maioria, gente jovem e empreendedora, podem dar um impulso às economias dos países de acolhimento – contribuindo, além da demografia, para reforçar (e não enfraquecer) os respectivos sistemas fiscais e de segurança social.
Essas considerações não são todavia atendidas por grande parte da opinião pública, que prefere ver nos imigrantes um factor de concorrência no emprego e um perigo em termos culturais, além de poderem veicular apoio ao terrorismo de inspiração islâmica.
Assim, nada, para já – nem os apelos da ONU, nem as orações do Papa, nem os esforços abnegados das organizações não governamentais – parece poder deter o muro de hostilidade ditada pelo egoísmo que entretanto se levantou em vários países contra a corrente migratória.
A imagem de Aylan Kurdi ainda está na memória de todos. Mas em termos de centros decisórios e até de grande público, parece que já poucos comove. De vários Estados europeus a alguns países africanos e asiáticos, passando pelos EUA, erguem-se novas barreiras e os migrantes são rejeitados como se fossem filhos de um Deus menor.
Tornaram-se afinal, neste início de novo milénio, um índice da nossa (des)humanidade.
Imagem: Murad Sezer – 15.set.15/Reuters