A luta de classes não é o alfa e o ómega da humanidade, pensei vezes sem fim depois dos meus anos de faculdade. Não deixei ainda de pensar assim e, a título de exemplo, creio que a plena emancipação da mulher é talvez a maior revolução da nossa era, aquela que foi mais ignorada por experiências democráticas anteriores e a que tem um maior potencial de mudança social.
A irracionalidade e o ódio com que as nossas elites estão a reagir à eleição de Donald Trump levaram-me no entanto a reavaliar a importância que tenho dado à luta de classes.
Como explicar que a mesmíssima imprensa e elites que assistiram anos a fio sem nada dizer à política europeia de deixar os potenciais emigrantes afogar-se no Atlântico e no Mediterrâneo para os outros aprenderem; ou à lista de exclusão de entrada nos EUA, decretada por Obama, de quem quer que tivesse passado em sete países do Grande Médio Oriente, tivessem explodido contra uma medida quase idêntica à do seu antecessor passada por Donald Trump?
Depois de alguma reflexão, conclui que se trata mesmo de ódio de classe. Donald Trump é o protótipo do novo-rico – e o novo-rico, não o velho pobre, faz explodir o ódio de classe – que dá pontapés na gramática, diz dez OK’s por minuto, manda bocas às pequenas no estilo piropo do pessoal das obras e tem ainda, supremo insulto, a pretensão de despedir burocratas, mandar calar jornalistas, marimbar-se para académicos, em suma, desfazer toda a arquitectura social tão laboriosamente construída pelas nossas classes dominantes.
É o papel nivelador – numa certa dimensão democrático – do dinheiro na sociedade americana o que faz explodir ódios entranhados e impede alguma calma e bom senso por parte das nossas elites na avaliação do que se passa.
Michael Oreskes, à época editor do New York Times e monitor de um seminário a que assisti em 1990, contava que Richard Nixon, quando começou a pressentir alguma ambição política por parte do seu secretário, Henri Kissinger, começou a tratá-lo por “Doctor Kissinger” remédio preventivo infalível nos EUA para afastar rivais, pela imagem elitista que dá.
E não deixa de ser curioso que em Portugal o grande drama do Governo Passos Coelho tenha sido o do Ministro que dizia que era doutor mas não era doutor, enquanto nos EUA o drama tenha sido o do Ministro que era doutor mas não podia dizer que era doutor para não prejudicar a imagem. Melhor exemplo não poderíamos dar do contraste entre uma cultura profundamente popular e outra que não consegue esconder a sua natureza de antigo regime.
Karl Marx tão pouco era imune a esse fenómeno de sobranceria e ódio de classe e, talvez mais do que em qualquer outro dos seus escritos, fê-lo transparecer na sua “Miséria da Filosofia” resposta humanamente arrogante à “Filosofia da Miséria” que o Joseph Proudhon, humilde sapateiro, tinha dado à estampa.
Proudhon foi facilmente arrasado pelo antigo membro do “Doktor Club” berlinense, com uma tese de doutoramento em filosofia grega – chave para entendermos o seu Capital – e casado aristocraticamente.
A desforra fez-se politicamente, quando décadas mais tarde os partidários de Proudhon e Karl Marx se afrontaram na Comuna de Paris. Os resultados foram concludentes e este último foi por sua vez esmagado e reduzido à insignificância, insignificância política que como sabemos a história haveria postumamente de rectificar.
Intelectualmente, contudo, Karl Marx tinha um fascínio incontido pelos Estados Unidos da América, fascínio que o marxismo tentou esconder tanto quanto pode, e que é indispensável para entendermos o seu pensamento, que nada tem a ver com o quanto pior melhor da nossa extrema-esquerda, ou pelo menos da sua parte mais estridente.
Donald Trump actua com base em inúmeros preconceitos populares e raciocínios lineares, que não são por natureza mais certos ou errados do que outros preconceitos menos populares e lineares, mas que lhe dão uma capacidade de comunicação que conseguiu até hoje suplantar o impacto negativo da sua total ausência de sofisticação comunicacional.
Ele não tem nesta matéria qualquer monopólio da asneira. Veja-se por exemplo, o meu querido amigo e antigo colega no Parlamento Europeu, Benoît Hamon, que resolveu sair-se com uma proposta de imposto sobre os robots.
Se não fosse por não querer desestabilizá-lo no momento em que, fruto das circunstâncias, lhe caiu nos ombros a tarefa de defesa da esquerda, dava-lhe como trabalho de casa obrigatório a leitura do Capital de Karl Marx, e a forma como este, apesar de ver nas invenções tecnológicas um instrumento de luta de classe dos capitalistas contra os trabalhadores, se dissocia peremptoriamente das acções de destruição das máquinas por estes, e explica que as máquinas são a chave da sua futura libertação.
Mas, provavelmente, foi com o imposto sobre os robots que o Benoît Hamon ganhou as primárias socialistas francesas, como o Donald Trump ganhou as eleições com outros tantos dislates ou ainda como a filosofia da miséria de Joseph Proudhon ganhou, postumamente, a Comuna de Paris.
Seguramente, a democracia é um sistema mais complexo do que tínhamos imaginado quando nos lançámos no 25 de Abril.
Bruxelas, 2017-02-03