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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Religião e Filosofia

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Alexandre HonradoNunca apaziguámos, entre nós –  tão pouco sabedores que somos nos dias que correm -, nem entre nós e os outros, as mesmas grandes separações que desentendiam entre si (e entre si e os outros), os sábios de outrora.

O que os grandes pensadores do passado carregavam como angústia,  está hoje connosco de uma forma avassaladora. Milhares de anos de pensamento profundo não resolveram nem criaram profundidade ao pensamento do Homem.

Hoje, parecemos uma vez mais perdidos. Sem deuses capazes nem homens destinados. À deriva de uma sorte a que chamamos nossa mas que apontamos, quando não nos agrada, a alguma entidade intocável – “ELES”, os responsáveis extremos pelo nosso desconforto.

O ser humano do individualismo e da individuação (essa utopia que nos faz acreditar que podemos ser indivisíveis e senhores do nosso destino sem o Outro), não só sofre o seu destino de navegador solitário entre as multidões, como a sua espiritualidade perdida e o desprezo que os deuses lhe devotam.

Assim, o Homem procura novos desafios, novos motivos de acreditar, novas metas mais fundamentalistas que lhe dêem uma razão à vida.

É exaustivo acordar a olhar para as estrelas e ter de admitir que há mais pontos de luz lá em cima do que grãos de areia cá em baixo – e que algumas dessas estrelas já morreram e o que nos legaram foi, tão somente, a ilusão de um traço de luz que ainda nos ilude.

Menos cultos, criamos estruturas de crença cada vez mais improvisadas. Somos a constatação de que tudo o que criamos e criámos é provisório e perecível. O que interessa o caminho escolhido se amarrámos os pés e não conseguimos avançar? (E todavia, nunca nenhum outro tempo da História do mundo teve tantas e tão úteis descobertas científicas e provavelmente nunca estivémos, paradoxalmente, tão próximos do que podíamos ter sido como agora).

Separações (e distinções) entre Natureza e Deus, Corpo/Espírito, Deus/Mundo, Espaço/Tempo, Natureza/Cultura, Razão/Religião continuam a deixar-nos incapazes, quase sempre, de entender o que está no fundo da espiral, do vórtice; continuam a  deixar-nos incapazes de aceitar que somos Totalidade, independentemente do que criamos (inventamos) para explicar as nossas parcialidades e limites.

Aquilo a que chamamos religiões, por exemplo, é um conjunto de conceitos latos que interpretamos individualmente e que adaptamos à nossa maneira de ser, de acordo com o que mais nos agrade e sobretudo que mais apazigúe os nossos medos mais primários. A dubiedade parte de um desequilíbrio suportado em torno das nossas sombras.

Precisamos de resposta ao medo insuportável de não sabermos nada: o que vai acontecer mais adiante, o que seremos, como acabaremos. E cada momento meditado é uma ansiedade. Cada contrariedade um apelo ao abismo (a criança corre para as saias da mãe e o adulto para os seus inexplicáveis excessos).

Precisamos de resposta ao medo insuportável de não sabermos porque sofremos, porque duvidamos, porque não somos mais e melhores. Precisamos de pequenas lanternas a incidirem luzes sobre as nossas facetas mais obscuras.

Hei-de passar mais tempo nessa janela inquieta a que chamamos redes sociais, uma janela, incluindo nela as cortinas e a sacada, os estores e as visões, para entender, afinal, que as sombras que nos distanciam não são ideias fracturadas mas o recuo a um momento do mundo em que a ignorância ditava as suas leis.

Ali, nas redes sociais, está um dos nossos espelhos: milhares de formigas enunciando soluções para o mundo no mesmo formigueiro esmagado pela bota de todas as contrariedades que as ignoram.

Hoje, vemos fenómenos ditos religiosos que se assemelham ao que estudámos sobre o que se vivia há mil anos (ou muito antes): retratos de uma barbárie de ignorantes que se afirmam pela violência demonstrando o quão fracos são afinal de contas. Este recuo da cultura no tempo parece correr paralelamente ao declínio da civilização. O ser humano parece Alguém Ausente a combater o seu mais obscuro Eu.

De costas para a cultura, permite-se hoje, especialmente em alguns pontos do globo, confundir a religião com a violência e com a lei do inumano. Fraca voltagem na pilha intensa do que lhe está no zénite, pois a religião é o oposto, é uma das liberdades humanas mais sofisticadas e uma das suas manifestações mais elevadas. Quando é cultura.

O combate não é hoje entre Crença e Razão, mas entre o Saber e a Ignorância. Como os sábios antigos que propunham sabedoria caminhando com os seus discípulos pela Agora, largando o melhor do pensamento aos quatro ventos. Sábios, sem as grilhetas dos deuses, eram destemidos pois viviam fora dos casulos misteriosos, dos alteres e dos templos, das orações autofágicas e das orações transgressoras. Tinham-se por completos.

Talvez os tempos de hoje sejam a última página de um manuscrito de letra tremida. E o que se seguirá seja o regresso ao Homem sem inadequações.

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