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Domingo, Dezembro 22, 2024

Rendimentos, preços e impostos

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Nos anos 1960 e 1970, Portugal conheceu momentos de significativo aumento de preços, que nem sempre foram reconhecidos no discurso oficial como processos inflacionistas sustentados e irreversíveis, daí a ficção de se chamar Subsídio Eventual do Custo de Vida a uma actualização salarial concedida à função pública em 1966, ainda sob Oliveira Salazar, pelo Ministro das Finanças Ulisses Cortez(i).

Em 1974 com a descompressão política e social inerente à Revolução de Abril, salários e preços conhecem uma subida muito elevada, que é em parte contida em 1975 através do controlo administrativo da subida de preços.

Em 1976 é criado numa perspectiva de concertação, um Conselho Nacional de Rendimentos e Preços, em diploma ainda aprovado pelo Conselho de Ministros do VI Governo Provisório(ii), no entanto este Conselho nunca terá tido funcionamento efectivo, tendo sido, creio, apenas provido um dos lugares de secretariado.

Os documentos mais relevantes em termos de Política Económica eram à data os Planos, não se devendo perder de vista que Cavaco Silva foi Presidente do Conselho Nacional do Plano após a sua passagem como Ministro das Finanças e do Plano pelo Governo de Sá Carneiro. Em 1991 é criado o Conselho Económico e Social, que incluiu uma Comissão Permanente de Concertação Social, que sucede ao Conselho Nacional do Plano, ao Conselho Nacional de Rendimentos e Preços e ao Conselho Permanente de Concertação Social.(iii)

 

Os anos mais recentes

Já houve tempo em que o Conselho Económico e Social chamou a atenção da opinião públicas graças a pareceres incisivos sobre as Grandes Opções do Plano.

Ultimamente depois da aprovação da “contra-revolução” imposta com o acordo da UGT – João Proença e que a “Câmara Corporativa” se recusa a corrigir, os debates com incidência na política de rendimentos têm-se centrado essencialmente na definição dos valores do salário mínimo.

O aumento dos salários médios parece estar fora do âmbito das possibilidades da concertação social, a não ser na medida que resulte de uma contratação colectiva que deixou de ter espaço no tempo da Troika. Os governos socialistas foram acenando cum um desagravamento do IRS que revertesse em parte o “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar, mas aumentos de remunerações por parte de entidades patronais, nem é bom falar disso.

Entretanto, um novo fenómeno “responde” à estagnação salarial no sector empresarial: a falta de mão de obra que esteja disposta a trabalhar pelos salários oferecidos: a agricultura vem recorrendo a estrangeiros contratados em condições vergonhosas, a indústria e alguns dos serviços também não atraem.

Na própria Administração Pública as candidaturas para preenchimento de postos de trabalho qualificados mostra que nem sempre estes são atractivos: o Doutor Eugénio Rosa nos seus textos para o Jornal Tornado vem documentando amplamente essas situações. Falta planeamento na resposta às necessidades falta reverter os aspectos mais gravosos das políticas Sócrates / Teixeira dos Santos, insustentáveis a médio prazo., em todo o caso

Julgo que teria sido possível ter chegado a um acordo político a propósito da proposta de OE para 2022 que, tanto quanto é possível perceber se malogrou a propósito da contratação colectiva e do Serviço Nacional de Saúde.

Não deixa de ser curioso que o governo de maioria absoluta PS tenha aceitado fazer retroagir a 1 de Janeiro de 2022 algumas revalorizações acordadas posteriormente.

 

O regresso da inflação

A forma como a inflação ressurgiu na Europa, nos Estados Unidos e num conjunto de outros países quando começaram a ser aliviadas as restrições do tempo da pandemia de COVID – 19 não pode ser unicamente associada ao surgimento do conflito armado entre a Federação Russa e a Ucrânia.

Num artigo de opinião de Christine Lagarde – “Assegurar a estabilidade de preços” recentemente publicado na imprensa europeia de referência(iv) afirma-se que:

A guerra da Rússia na Ucrânia provocou um aumento de custos energéticos e dos produtos agrícolas

Mas também que:

A escassez de materiais, de equipamento e de mão-de-obra resultante da pandemia também está a fazer subir os preços

Faltaria determinar o impacto de um e outro tipo de causas e, acrescento, esclarecer em que medidas as sanções europeias e norte-americanas, que foram desenhadas para, como resultado definitivo, “desligar” a Rússia do resto do mundo estão a contribuir para a subida de preços.

A estratégia europeia que levou à definição dos Planos de Recuperação e Resiliência apontava, lembremo-nos, para uma reindustrialização dos estados-membros, evitando situações como a necessidade de compra de ventiladores a produtores chineses. Não é evidente como está, no contexto de envolvimento do “Ocidente” no conflito, a ser prosseguida.

Marcelo Rebelo de Sousa

É entretanto de notar que os agentes políticos portugueses na sua generalidade – incluindo Marcelo Rebelo de Sousa – associam a inflação à guerra na Ucrânia, o que os operadores económicos têm na generalidade evitado fazer.

No mês de Março o Director-Geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, Gonçalo Lobo Xavier apontava para um aumento de 30 % do preço dos bens alimentares, sem ruptura de stocks nos supermercados(v).

Com habilidade, Lagarde não se envolve nesse debate e faz a defesa do aumento das taxas de juro para reduzir a inflação, rejeitando o aumento de salários, que alimentaria uma espiral que, como historicamente se terá comprovado, a agravaria:

Muita desta inflação está a ser impulsionada por factores que os bancos centrais não podem controlar. O que podemos fazer, contudo, é assegurar que a inflação não se torna persistente. É o que poderia acontecer, caso as subidas de preços se generalizassem na economia e as pessoas começassem a contar com uma inflação mais elevada no futuro. Nesse cenário, deparar-nos-íamos com as espirais salários-preços que historicamente conduziram a uma inflação descontrolada.

Esta ideia de combater a inflação subindo o preço do dinheiro pode ser um tanto controversa e parece corresponder ao espírito dos anos 1980 , que levou à disseminação de soluções neo-liberais.

Como estamos em época de incêndios florestais talvez possa, com boa vontade, ser considerada como uma tentativa de combater o fogo com um contra – fogo.

O período de dinheiro barato em que temos vivido é em princípio favorável ao investimento, mas também poderá ter alimentado a especulação sobre os preços dos produtos alimentares e energéticos.

Veremos se reduzir a sua disponibilidade reduz igualmente a propensão para a especulação.

E será que existe efectivamente um ambiente favorável a uma descida de preços por via da concorrência? As subidas de preços induzidas pelo aumento de preços de produtos energéticos ou alimentares não parecem ser revertidas quando os preços internacionais destes produtos acabam por cair.

 

Medidas que no plano nacional, poderão ser tomadas

Poderão evidentemente ser tomadas medidas que incidam sobre os preços dos produtos energéticos directamente ou através da sua componente fiscal, o que no caso ibérico está a ser feito para os grandes utilizadores industriais.

A fiscalidade dos produtos petrolíferos, que em Portugal já se encontrava debaixo de fogo, acabou por sofrer ajustamentos, com pouco impacto sobre os preços de venda efectivamente praticados. A Espanha optou por reduzir igualmente o IVA sobre a electricidade, o que até agora não foi ensaiado em Portugal e poderia ser muito importante para os consumidores domésticos.

Entretanto tem de ser ponderada a existência de valores indexados à inflação, como é o caso dos relativos a rendas de casa e a pensões. Ambos vão passar de um quase congelamento para valores nominais mais substanciais. Fazer alterações em prejuízo de quem depende desses rendimentos – por exemplo dos senhorios – descredibilizaria o sistema, mas não se pode esquecer que muitos dos inquilinos subsistem à custa de rendimentos do trabalho que não são actualizados com a inflação.

Fernando Medina

Aliás a organização económica de que o Banco Central Europeu é guardião, tem horror aos mecanismos salariais assentes em scala mobile como Lagarde nos recordou, (e cuja lógica, sejamos justos, o “nosso” Medina das “contas certas” já tinha afastado).

O ter-se adiado para 2022 os reajustamentos salariais justificados pelo reajustamento de carreiras e situações, inclusive os necessários para tornar certas funções mais atractivas, vai criar necessariamente dificuldades com o pessoal que não obtiver sequer uma simples actualização compensatória da inflação.

Não me admiraria que algumas respostas possam envolver recurso a instrumentos fiscais, seja da fiscalidade directa ou da fiscalidade indirecta.

Uma possibilidade que se aplicaria tanto à Administração Pública como ao sector empresarial seria recriar um “subsídio eventual do custo de vida”, com carácter temporário, livre de contribuições para a Segurança Social, tanto as do empregador como as do trabalhador.

António Guterres

Quanto à possibilidade de tributação dos lucros extraordinários, imprevistos ou anormais das empresas, que curiosamente começou a ser colocada pelo Ministro da Economia, faz sentido o apelo de Marcelo Rebelo de Sousa para que não sejam distribuídos como dividendos. Não é que me agrade a visão moralista implícita. Mas é que António Guterres e o dito Marcelo fecharam o acordo de revisão constitucional de 1997 estatuindo, entre outras pérolas, a não-retroactividade da lei fiscal.

Veremos que soluções serão colocadas em Setembro em cima da mesa.

 

Notas

(i) Ver artigo anterior no Jornal Tornado de 11 de Maio de 2022, Subsídio Eventual de Custo de Vida.

(ii) Decreto-Lei nº 646/76, de 31 de Julho (Cria o Conselho Nacional de Rendimentos e Preços)

(iii) Lei nº 108/91, de 17 de Agosto (Conselho Económico e Social). No Diário da República Electrónico – DRE encontra-se publicada uma “versão consolidada” deste diploma.

(iv) Em Portugal, em o Público de 22 de Julho de 2022 Assegurar a estabilidade de preços

(v) Preço dos bens alimentares vai subir 30%, mas “não vai haver rutura”, garante a APED

 

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