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João de Sousa

Sábado, Novembro 16, 2024

Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana

Tudo começou na madrugada do dia 10 de novembro de 1989, quando se abriram os portões que dividiam a cidade de Berlim. Depois, como se fosse um castelo de cartas, caíram os regimes comunistas da Europa Central, dissolveu-se o Pacto de Varsóvia, reunificou-se a Alemanha, e desintegrou-se a União Soviética. E o fim da Guerra Fria foi comemorado com se fosse a vitória definitiva da “democracia”, do “livre mercado”, e de uma nova “ordem ética internacional”, orientada pela tábua dos “direitos humanos”.

I’m not even here to persuade you that the liberal international order is necessarily all bad. I´m just here to persuade you that it´s over.
Niall Ferguson. The end of the liberal order. London: Oneworld Book, 2017, p. 6

Trinta anos depois, entretanto, o panorama mundial mudou radicalmente. A velha “geopolítica das nações” voltou a ser a bússola do sistema mundial; o nacionalismo econômico voltou a ser praticado pelas grandes potências; e os grandes “objetivos humanitários” dos anos 90 foram relegados a um segundo plano da agenda internacional. Nesses 30 anos, o mundo assistiu à vertiginosa ascensão econômica da China, à reconstrução do poder militar da Rússia e ao declínio do poder global da União Europeia (UE).

Mas o mais surpreendente de tudo aconteceu no final deste período, quando os Estados Unidos se afastaram de seus antigos aliados europeus e voltaram-se contra os valores e as instituições da ordem “liberal e humanitária” que eles mesmos haviam criado, depois do fim da Guerra Fria. E todos se perguntam como foi que o mundo deu uma cambalhota tão grande, para frente e para trás, em tão pouco tempo? E o que passará agora com o mundo, depois das eleições presidenciais norte-americanas, de novembro de 2020?

Já se falou muito do papel que teve a globalização econômica e seus efeitos perversos, no desencanto com a “ordem liberal” dos 90: porque provocou um aumento geométrico da desigualdade entre os países, as classes e os indivíduos; e porque ficou associada a uma sucessão de crises econômicas localizadas que culminaram na grande crise financeira de 2008, que contagiou a economia mundial – a partir dos Estados Unidos – pelas veias abertas pela desregulamentação dos mercados globalizados. Mas existe um outro lado deste processo de autodestruição que em geral é menos mencionado, porque envolve um aspecto essencial da forma em que foi exercida a liderança mundial dos Estados Unidos, durante esses 30 anos.

A Guerra Fria terminou sem nenhum tipo de “acordo de paz”, e depois da dissolução da União Soviética, as potências vitoriosas não definiram entre si uma nova “constituição” para o mundo. Antes mesmo que se pudesse colocar em pauta esse problema, a vitória arrasadora dos Estados Unidos na Guerra do Golfo acabou impondo a vontade americana como princípio ordenador do “novo mundo”. Por isso se pode dizer que o “bombardeio teledirigido” do Iraque, em 1991, cumpriu papel análogo ao do bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, em 1945: foi a hora em que se definiu – simultaneamente – uma nova “ética internacional” e um novo “poder soberano”, responsável – a partir daquele momento – pela arbitragem do “bem” e do “mal”, do “justo” e do “injusto” no sistema internacional. Com a grande diferença que, em 1991 – ao contrário de 1945 – não existia no sistema mundial nenhuma outra potência capaz de questionar os desígnios unilaterais dos EUA. Foram 42 dias de ataques aéreos contínuos, seguidos de uma invasão terrestre rápida e contundente, com poucas centenas de baixas americanas e cerca de 150 mil mortos iraquianos. A mesma forma de guerra “à distância”, que depois foi utilizada na Iugoslávia, em 1998, e também nas “intervenções humanitárias” da OTAN na Bósnia em 1995, e no Kosovo em 1999.

Muitos perceberam que a vitória americana na Guerra do Golfo havia consagrado uma nova “ordem ética” e um novo “poder soberano”, com capacidade de impor e arbitrar o novo sistema de valores em todo o mundo. Mas nem todos perceberam que esta nova ordem trazia consigo contradições e tendências próprias de um poder global quase absoluto, sem limites capazes de impedir seu desvio na direção da arbitrariedade, da arrogância e do fascismo[1], encobertas pela euforia da vitória e pela adesão entusiástica à nova ideologia da globalização liberal. Em particular durante a administração de Bill Clinton, que passou para a história como o período em que os Estados Unidos teriam utilizado seu poder econômico e força militar em defesa da democracia, da paz, da liberdade dos mercados e dos direitos humanos. Na prática, o governo de Bill Clinton seguiu os mesmos passos do governo de George Bush (pai), os dois igualmente convencidos de que o século XXI seria um “século americano”, e que o “mundo necessitava dos Estados Unidos”, como costumava repetir Magdeleine Albright, sua secretária de Estado. Tanto foi assim que, durante os oito anos de seus dois mandatos, a administração Clinton manteve um ativismo militar permanente ao lado de sua retórica “globalista” e “humanitarista”. Nesse período, segundo Andrew Bacevitch, “os Estados Unidos se envolveram em 48 ações militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria”[2], incluindo suas “intervenções humanitárias” na Somália em 1992-1993; na Macedônia em 1993; no Haiti em 1994; na Bósnia-Herzegovina em 1995; no Sudão em 1998; na Iugoslávia em 1999; no Kosovo em 1999; e no Timor Oriental, também em 1999. Como observou Chalmer Johnson, importante analista internacional norte-americano:

[…] entre 1989 e 2002 ocorreu uma revolução nas relações da América do Norte com o resto do mundo. No início desse período, a condução da política externa norte-americana era basicamente uma operação civil. Por volta de 2002, tudo isto mudou e os Estados Unidos já não tinham mais uma política externa; eles tinham um império militar. Durante o período de pouco mais do que uma década (anos 1990), nasceu um vasto complexo de interesses e projetos que eu chamo de “império” e que consiste em bases navais permanentes, guarnições, bases aéreas, postos de espionagem e enclaves estratégicos em todos os continentes do globo.[3]

Para não falar da ocupação americana quase instantânea dos territórios que haviam estado sob influência soviética até 1991 – começando por Letônia, Estônia e Lituânia, seguindo por Ucrânia e Bielorrússia, os Balcãs, o Cáucaso e chegando até a Ásia Central e o Paquistão. A mesma lógica expansiva e de ocupação que explica a rapidez com que os EUA levaram à frente seu projeto de ampliação da OTAN, mesmo contra o voto dos europeus, em alguns casos, construindo na década de 90 um verdadeiro “cordão sanitário” que separava a Alemanha da Rússia, e a Rússia da China, de tal maneira que no final dos anos 90, a nova “ordem pacífica, liberal, e humanitária” já havia permitido que os Estados Unidos construíssem uma verdadeira infraestrutura de dominação militar global.

Quando se lê desta forma a história, entende-se melhor como foi que o projeto de “hegemonia humanitária” dos anos 90 transformou-se tão rapidamente num projeto imperial explícito durante o governo de George W. Bush, em particular depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Porque na prática foram os “atentados” e a imediata declaração da “guerra universal ao terrorismo” que permitiram a George W. Bush colocar sobre a mesa de maneira direta e franca o projeto de construção do “século americano”. A nova doutrina estratégica americana se propunha a combater um “inimigo terrorista” que podia ser qualquer pessoa ou grupo, dentro ou fora dos Estados Unidos. Tratava-se de um inimigo universal e ubíquo, ou seja, quem quer que fosse considerado pelo governo americano como uma ameaça à sua segurança nacional, podendo ser atacado e destruído em qualquer lugar que estivesse, por cima do direito à soberania nacional dos povos. Por isso, quem aceitasse participar dessa guerra ao lado dos Estados Unidos aceitava também transferir-lhe uma soberania que o tornava automaticamente um poder global de tipo imperial, numa guerra que não teria limite e que seria cada vez mais extensa e permanente. Na verdade, a mensagem era uma só, e não estava destinada apenas aos grupos terroristas: os EUA estavam decididos a manter sua dianteira tecnológica e militar com relação a todas as demais potências do sistema, e não apenas com relação aos terroristas. Uma distância que desse aos americanos o poder de arbitrar isoladamente a hora e o lugar em que seus adversários reais, potenciais ou imaginários, devessem ser “contidos” através de ataques militares diretos. É desnecessário sublinhar, por óbvio, que nesse novo contexto as ideias de soberania e democracia, e de defesa dos direitos humanos, perderam relevância ou foram praticamente esquecidas, sendo utilizadas apenas de forma ocasional e oportunística para encobrir guerras e intervenções feitas em nome dos interesses estratégicos dos EUA e de seus aliados mais próximos.

Isto explica por que a resistência ao poder americano acabou renascendo de dentro do próprio núcleo das velhas grandes potências do sistema interestatal, e da Rússia, em particular, no campo militar. Um momento decisivo dessa história aconteceu na Geórgia, em 2008, quando o poder imperial dos EUA e da OTAN – que se propunha a incorporar a Georgia – encontrou seu primeiro limite depois do fim da Guerra Fria. A chamada “Guerra da Geórgia” foi muito rápida e talvez até passasse despercebida na história do século XXI, se não tivesse acontecido o inesperado: a intervenção das Forças Armadas da Rússia, que em poucas horas cercaram o território da Geórgia, numa demonstração contundente de que a Rússia havia decidido colocar um limite à expansão das tropas da OTAN para o Leste, vetando a incorporação da Geórgia como novo Estado-membro da organização. Foi exatamente naquele momento que a Rússia demonstrou, pela primeira vez, sua decisão e capacidade militar de opor-se ou de vetar o arbítrio unilateral dos EUA, dentro da nova ordem mundial do século XXI. Mais à frente, em 2015, a Rússia deu um novo passo nessa mesma direção, quando interveio na Guerra da Síria, sem consultas prévias e sem subordinação a nenhum outro comando que não fosse o de suas próprias Forças Armadas. Com sua intervenção militar na Síria, a Rússia já não estava se propondo apenas a vetar decisões e inciativas estratégicas dos EUA e da OTAN; impôs pelas armas seu direito de também arbitrar e intervir nos conflitos internacionais, mesmo que fosse contra os mesmos inimigos, e a partir dos mesmos valores defendidos por europeus e norte-americanos. E esta foi a grande novidade que mudou o rumo dos acontecimentos mundiais, ao questionar a “Pax americana”’ a partir dos mesmos princípios, e através dos mesmos métodos dos norte-americanos.

Do nosso ponto de vista, foi a surpresa e a gravidade desse “desafio” que levaram os Estados Unidos de Donald Trump a atacar com tamanha violência o seu próprio projeto “liberal, pacifista e humanitário” da década de 90[4], abrindo mão do seu “messianismo moral” e trocando suas convicções liberais, e humanitárias, pela defesa pura e simples do seu próprio “interesse nacional”.

Se Donald Trump for derrotado nas eleições presidenciais de novembro de 2020, e se os democratas elegerem Joe Biden como novo presidente norte-americano, é muito provável que se proponham a refazer as alianças tradicionais e a imagem cosmopolita e multilateral da política externa norte-americana. Mas os cristais já foram quebrados, e uma coisa é absolutamente certa: a utopia liberal e humanitária dos anos 90 está morta.

[1] “Se a Guerra do Golfo definiu o novo ‘princípio do limite’ dentro do sistema mundial, ela não resolveu uma outra questão fundamental: ela não esclareceu qual será o ‘limite deste princípio’. E neste caso, não está errado pensar que esta nova ‘Guerra Pérsica’ não conduza a humanidade a um novo patamar civilizatório com a universalização da ética cosmopolita criada pela Europa iluminista, senão que, pelo contrário, se transforme na antessala de uma nova era marcada pela força, o medo e o retrocesso político-ideológico dentro da própria coalizão que saiu vitoriosa desta guerra” (Fiori, J. L. A “Guerra Pérsica”: uma guerra ética. Cadernos de Conjuntura, n. 8. Rio de Janeiro: Instituto de Economia Industrial/UFRJ, 1991, p. 5)

[2] Bacevich, A. American Empire. Massachusetts: Harvard University Press, 2002, p. 143 (tradução nossa)

[3] Johnson, C. The Sorrows of Empire. New York: Metropolitan Books, 2004, p. 22-23 (tradução nossa)

[4] Fiori, J. L. Babel Syndrome and the New Security Doctrine of the United States. Journal of Humanitarian Affairs, v. 1, n. 1, p. 42-5, 2019.


por José Luís Fiori, Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI, coordenador do GP da UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou “O Poder global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007 ; “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 2017 ; e, “Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018 | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

Fonte: Carta Maior

 

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