Comecemos pelo essencial: nada na principal resolução sobre as missões de busca e salvamento no Mediterrâneo, chumbada pelo Parlamento Europeu no passado dia 24 de Outubro, aponta para uma política de portas abertas à imigração.
A principal moção – que vinha da comissão dos direitos civis – pouco mais avançava do que: um convite à Comissão Europeia para fazer cumprir o quadro legal internacional por parte dos Estados Membros; outro convite dirigido a estes últimos para que se entendam em matéria de acolhimento de refugiados e migrantes e no reforço de operações navais de busca e salvamento; finalmente, a constatação que as autoridades de Trípoli não podem ser vistas como parceiros nestas operações.
O processo de votação – como acontece frequentemente no Parlamento Europeu – submeteu o texto a muitas dezenas de emendas (81) tornando difícil entender a quem coordena os votos qual o juízo a fazer sobre o texto final que foi submetido à aprovação, mas olhando para o desfecho, pode-se compreender a discordância com a leveza do texto, a insuficiência da análise e das recomendações, mas não se pode entender a sua rejeição.
No principal partido europeu, os portugueses do PPE, estão entre os que mais se dividiram efeito provável de falta de atenção (uma das deputadas portuguesas veio a registar que se tinha enganado, procedimento que não conta para o resultado) o que levou a que fossem responsabilizados pelo chumbo da resolução.
Penso portanto que a direita portuguesa esteve mal neste debate e as desculpas que procurou encontrar para o seu comportamento dividido e desatento são falhas de sentido.
Posto isto, uma análise imparcial do texto não permite incensá-lo. Em lado algum da resolução se invocam os dois princípios da dignidade e do direito à vida consignados nos dois primeiros artigos da Carta dos Direitos Fundamentais; sobram os elogios à agência europeia pela sua acção e as desculpas pela sua inacção, mas faltam as constatações da fragilidade da política europeia de asilo ou migração; por último, abundam detalhes mas falha a compreensão de tudo o que está em causa.
Dizer portanto que a aprovação deste texto ia salvar as vidas perdidas no Mediterrâneo é na melhor das hipóteses fantasia, na pior, manipulação da opinião pública.
A rejeição da resolução – mera declaração sem consequências legais – deveria ser a oportunidade para uma poderosa iniciativa parlamentar para enfrentar o que é um dos maiores problemas políticos europeus.
Como penso que é hoje consensual, o Tratado de Lisboa da União Europeia promoveu um emaranhado institucional que tornou incompreensíveis responsabilidades e competências e generalizou a incapacidade europeia, sendo a saga da defesa da vida humana nas fronteiras marítimas, das agências europeias, da Comissão, do Conselho, dos serviços externos europeus e dos Estados, um claro exemplo dos seus frutos.
Em situações dessas, só alguém com a capacidade e determinação para fazer o que Mario Draghi fez com o Euro – atropelando a letra de normas processuais no percurso – pode dar uma resposta aos desafios que se enfrentam.
A defesa da dignidade e do direito à vida são a pedra angular de qualquer política europeia, porque é apenas assente na sua defesa que a nossa Europa faz sentido. Deixar afogar as pessoas porque isso serve de dissuasão à imigração ilegal, retira o lucro dos traficantes, ou frustra os desejos dos Estados que enviam deliberadamente refugiados para a Europa é não só uma desumanidade como é também uma estupidez.
O principal adversário das tiranias imperiais iraniana ou turca, ou dos grupos puramente criminosos, é a sociedade civil dos povos que elas oprimem. Dar a mensagem de que na Europa a vida e os princípios não têm valor, tal como não o têm do outro lado do Mediterrâneo, é autoinfligir uma pesada derrota.
A busca e salvamento são prioridades indiscutíveis que têm de ser levadas a sério e devem ter como contrapartida no plano interno uma política inteligente, responsável e equilibrada perante refugiados e migrantes na linha do que procurei apresentar na minha crónica aqui no Tornado a 20 de Agosto.
No plano externo, para além do imperativo de uma menor desigualdade no planeta e especialmente entre a Europa e os seus vizinhos, não é possível ignorar a agressão, a limpeza étnica, a expansão imperial e a ameaça de tiranias como a turca e a iraniana que são a principal mola das fugas pelo Mediterrâneo.
Enfrentar a crise dos refugiados pagando à Turquia seis biliões de Euros para não expulsar as pessoas para a Europa, fechando simultaneamente os olhos à limpeza étnica no Curdistão é insano e contrário aos interesses europeus.
Apaziguar o despotismo imperial iraniano – principal responsável pela tragédia síria –branqueando a sua política é outra das formas pelas quais a Europa está a aumentar o fluxo de refugiados às suas portas. Nesta matéria, é bom ter em conta que são os deputados do Bloco de Esquerda e do PCP os que tomam posições desumanas, como se viu na sua abstenção no voto da resolução do Parlamento Europeu a condenar a misoginia do regime iraniano, resolução aprovada pela esmagadora maioria.
Não há nenhuma crise dos refugiados, há uma crise de afirmação dos valores humanos no mundo e em particular junto dos seus vizinhos. Sem compreendermos isso não encontraremos o caminho que necessitamos empreender.
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