“Uma escrita com imagens em movimento e sons”. Assim Robert Bresson (diretor francês 1901 – 1999) refere-se ao cinema do modo como o concebeu e realizou na sua bem-sucedida carreira.
Posso dizer que o livro “Intrépido Colosso”, obra biográfica iniciada há quatro anos e recém-lançada, tem a mesma proposta, só que, em vez de dirigir-se ao espectador (ou ao público possível de leitores), a narração busca, primeiramente, uma comunicação com o próprio protagonista da história.
Explico: quando recebi a encomenda desta biografia (que eu pretendia terminar em seis meses, conforme propus) o biografado me questionou: “menina, será que a minha vida vale a pena?”.
Não foi uma pergunta capciosa, de quem talvez tivesse a vaidade de querer me ouvir responder: “sim, é claro que vale a pena!”.
Meu interlocutor, Demetre, estava se referindo ao fato comprovável de que a maioria de nós, apesar das aventuras e desafios pessoais, não tem uma vida heroica, imortal, digna de um livro como “Odisseia”, de Homero.
É em Odisseu (ou Ulisses, protagonista da obra de Homero) que o meu biografado se espelhou quando tentou avaliar o significado da sua longa vida, porque foi em Galiá, pequena cidade na Ilha de Creta, que Demetre nasceu e lá — ao entrar na escola para se alfabetizar — estudou história junto com mitologia.
Demetre talvez não tenha a real percepção, mas identifiquei, nas primeiras entrevistas, que essa dimensão “fabulosa” dos heróis e deuses gregos fazia parte da sua personalidade de um modo tão natural quanto extraordinário. Por isso o nosso trabalho, juntos, se tornou “processo”, de anos, não apenas cumprimento de tarefa, em meses.
Eu precisava revelar rapidamente minhas percepções ao biografado, porque Demetre estava com 86 anos e já havia, desde a infância pobre, se preparado para uma morte aos 60. Não morreu na idade “combinada com Deus”, mas, 20 anos depois, quase morreu ao enfrentar uma doença gravíssima e, finalmente, pouco antes de eu o conhecer, havia perdido o grande amor da vida, a mulher com quem compartilhara 60 anos de casamento.
Definitivamente ele não precisava de uma biografia para ostentar ou para dar suporte a qualquer força de sobrevivência. Tenho certeza de que tem força mais do que suficiente para chegar e ultrapassar o centenário.
Demetre precisava voltar “para Ítaca” e para o amor, “Penélope”; precisava voltar para casa e recuperar fôlego para nova odisseia na vida.
Pode-se dizer que a velhice traz essa dupla necessidade: a da volta para casa em busca de apaziguamento e, ao mesmo tempo, a de motivação para novas empreitadas. Trata-se de um enraizamento:
“O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. E uma das mais difíceis de definir.”
(Simone Weil)
Nos quatro anos em que trabalhamos juntos, eu e Demetre, na volta à sua infância, juventude, casamento, filhos, venturas e desventuras, tive o privilégio de me cercar de grandes autores — como Simone Weil, Ecléa Bosi, Walter Benjamin, Marcel Proust, Roland Barthes, Simone de Beauvoir e tantos outros — para tentar responder à pergunta sobre o valor da vida.
Com eles, e com Demetre — na escrita — foi possível “construir” um caminho de volta para casa e de novo mergulho na vida. Garanto: é preciso autoestima robusta, memória reavivada e motivação reinventada. É preciso reencontrar Penélope, o amor de toda uma vida!
Foi assim que Demetre fincou novas raízes no mundo que agora avista, tornou-se contador de histórias (o que pouco fazia, é mais calado, segundo o descrevem) e estreou como autor de livro aos 90 anos, mesmo sem domínio da escrita*.
Assim é que o idoso ganha nova vida no outono dos tempos, ressignificando o passado e acessando conteúdos, como talentos pouco explorados, para, a partir daí, deixar novamente o lar em direção ao desconhecido. Ao amor.
Vida é o oposto do apego a hábitos e manias, do desânimo na alma: vida é aceitar um novo desafio. Demetre aceitou, venceu e segue como o herói que sempre foi na direção de outras conquistas. Podem ser interiores.
*Intrépido Colosso – A extraordinária saga de Demetre Georges Markakis, CMAB Editora, 2016, distribuição LiteraRua
Nota: a autora escreve em português do Brasil