Recentes notícias de um encontro entre Vladimir Putin e Gerhard Schröder, o polémico ex-chanceler alemão que parece firmemente apostado em não seguir o pensamento convencional no que respeita à questão ucraniana, se voltaram a trazer para a ribalta essa rebeldia também deixaram alguma suspeição sobre o que o moverá.
A conhecida ligação de Schröder com o sector energético russo – quer enquanto chanceler e promotor do gasoduto Nord Stream, quer depois de 2017 como presidente do conselho de administração da Rosneft (uma das maiores empresas petrolíferas do mundo, cujo principal accionista é o governo russo, a par com a também pública Gazprom e a privada Lukoil) – e o evidente desalinhamento com a condenação sem reservas da actuação de Moscovo já levaram o governo alemão a retirar-lhe os privilégios de ex-chanceler, mesmo depois da sua renúncia ao cargo no conselho de supervisão da Gazprom.
Talvez já tivesse ficado claro que Schröder não se importará com o seu lugar na História (embora esteja a mover uma acção na justiça alemã para recuperar os privilégios de ex-chanceler), mas a sua ligação ao sector energético e a não condenação da acção russa na Ucrânia, levaram já o partido de Scholz a ponderar expulsão do ex-chanceler alemão, situação a que o visado respondeu com a aparente indiferença expressa na decisão de “ignorar” o processo de expulsão do SPD. Enquanto se espera o resultado, a comunicação social alemã não tem perdido a oportunidade para frisar a fragilidade da sua posição política, o descrédito não só no seu partido, mas também na sociedade alemã e até a exigência da devolução do diploma de “doutor honoris causa” atribuído pela Universidade de Göttingen. Ao contrário da comunicação social ocidental, a imprensa russa pinta Gerhard Schröder como “salvador da Europa” e realça o seu papel como possível negociador no actual cenário de crise, no que parece ser um sinal da disposição do Kremlin para encontrar uma solução negociada (outro é o recente acordo para a retoma das exportações cerealíferas) enquanto do lado ocidental se insiste principalmente no reforço do equipamento militar da Ucrânia e no prolongamento do confronto.
A seu tempo veremos se o experiente Gerhard Schröder se terá transformado num peão da estratégia russa ou se, na realidade, representa apenas a ponta visível do iceberg que são os interesses industriais alemães, fortemente abalados pela crise energética instalada na UE e no seu centro nevrálgico que é a Alemanha.
Esta crise energética, que é em grande parte artificial e fomentada a partir do exterior, pode aumentar o número de apoiantes das declarações do ex-chanceler sobre a necessidade de activar o Nord Stream 2 e manter o diálogo com a Rússia. Assim e ao contrário do que pretendem os grupos mais belicistas, talvez nem todos os alemães vejam Schröder como um “moço de recados” de Vladimir Putin, antes como um veterano político que tenta salvar o país dos apertos que lhe estão a criar, muito na linha com a política de desanuviamento (Ostpolitik) iniciada por Willy Brandt, outro ex-chanceler alemão e prémio Nobel da Paz em 1971.
Mesmo considerando a recente confirmação de que Schröder vai continuar no partido do governo alemão apesar dos laços com Putin, deverão persistir as muito fracas hipóteses de Berlim acolher a sugestão do ex-chanceler, enquanto na ausência de melhores argumentos voltam a recrudescer as críticas de carácter e se silencia o facto daquele poder ser um estadista experiente e uma das poucas personalidades que percebem o quadro geral das dificuldades políticas (traduzidas num governo de coligação que junta os sociais democratas do SPD, liberais e verdes) e económicas (subida da inflação e dificuldades de abastecimento energético) que a Alemanha enfrenta, numa conjuntura em que o governo alemão, assoberbado pelas contradições entre a ideologia liberal ocidental e a dura realidade das suas necessidades de energia, se revela incapaz de ensaiar um diálogo minimamente efectivo com o Kremlin.
Depois de há muito se ter instalado o principio do “politicamente correcto”, originando os mais assépticos e inócuos debates de ideias, e na sequência da realidade registada nos tempos da “troika”, quando responsáveis políticos e a generalidade da comunicação social se esforçavam por fazer passar a ideia da inexistência de alternativa ao modelo da austeridade-expansionista ditada pelos interesses dos credores e silenciando quem não acompanhasse o cânone, também agora, a propósito da guerra na Ucrânia, somos bombardeados com o mesmo tipo de discurso e embora a barragem a toda a informação que não se mostre abertamente favorável à Ucrânia já tenha sido mais efectiva, a imagem dominante continua a ser a deixada por afirmações como a de que «em Portugal há putinistas que têm tempo de antena», como se os dois lados de qualquer cenário de conflito pudessem ser maniqueistamente divididos entre “bons” e “maus” ou entre “santos” e “pecadores”. Neste verdadeiro cenário de censura, perfeitamente confirmados quando o canal televisivo Russia Today e a agência Sputnik se viram banidos da UE por tempo indeterminado, que só poderia ser entendível caso fossemos parte integrante do conflito, vai já muito além do “politicamente correcto” e é ele próprio fortemente inviabilizador da construção de soluções alternativas.
Personalidades estrangeiras, como o referido Gerhard Schröder ou Henry Kissinger (a cujas posições me referi no artigo «Ucrânia e a geoestratégia dos negócios»), que não têm uma posição declaradamente anti-russa e preferem apontar soluções que tentem resolver os problemas por meio do diálogo, ou nacionais, como os oficiais-generais Raul Cunha, Agostinho Costa e Carlos Branco, que em alguns órgãos de comunicação social se têm esforçado por apresentar perspectivas mais neutrais e sem diabolizar nenhum dos contendores, deveriam ver reconhecida a sua importância para um melhor entendimento das razões pelas quais atravessamos a actual conjuntura (uma situação de inflação e de crise energética) e para a formação de uma opinião pública europeia, verdadeiramente esclarecida sobre a intrincada teia de interesses que envolve o conflito e a real e óbvia motivação norte-americana na adopção de uma política de confronto com a Rússia a expensas da Europa.