O Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), aprovado pela Lei nº 62/2007, de10 de Setembro, esteve longe de ser consensual por altura da sua aprovação, importando perceber contudo que nuns casos efectivamente modificou, noutros meramente reconduziu, regimes jurídicos relativos a áreas muito diversas. Publicado na vigência da maioria absoluta obtida por José Sócrates em 2005, e resultando a proposta de lei da iniciativa do então Ministro da Ciência e do Ensino Superior Mariano Gago, foi, não obstante, sujeita a algumas alterações na Assembleia da República.
Fazia nessa altura parte da Direcção do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup) que foi convocada pelo Ministro para uma reunião em que este apresentou a iniciativa, apesar de no seu entendimento não estar sujeita a processo de negociação. No decorrer da reunião Mariano Gago entendeu, sem que o assunto fosse levantado da nossa parte(i), fazer um elogio ao seu Primeiro-Ministro, por ser alguém que procurava continuar a estudar ao longo da vida. O elogiado tinha-se submetido há dias a uma entrevista televisiva (por Maria Flor Pedroso e outro jornalista) sobre as experiências académicas no seu currículo, designadamente na Universidade Independente. Pessoalmente tinha seguido a entrevista, e estava muito longe de adivinhar os posteriores desenvolvimentos com o mestrado francês. Não comentámos, nem sequer entre nós, depois da reunião, este apontamento de Gago(ii).

Não posso, ainda hoje, deixar de sentir mixed feelings em relação a Mariano Gago, também por este episódio, não deixando de reconhecer que extinguiu a dita Universidade Independente e que o seu Primeiro o deixou fazer.
Dezassete anos depois, e quando se encetou finalmente um processo de revisão do RJIES que deveria ter sido, por sua expressa disposição, avaliado após decorridos cinco anos, foi curiosa a reacção que, nos meios sindicais, se veio a registar em relação à constituição de um Governo Montenegro em que as questões do Ensino Superior ficavam confiadas ao Ministério da Educação. A circunstância de o Ministro Fernando Alexandre ser professor do ensino superior foi implicitamente desvalorizada – o homem era economista e nem sequer era catedrático! Ao menos poderia ter um Secretário de Estado do Ensino Superior …
Afinal veio a perceber-se que tinha algumas ideias sobre o RJIES e acabou por entregar na Assembleia da República uma proposta de lei de revisão que tem sido pouco comentada, talvez por, um tanto surpreendentemente, ser muito extensa. Essa extensão decorre em parte de se pretender com a lei mudar a designação das “instituições de ensino superior” para “instituições de educação superior”, alteração essa extensiva à designação do diploma e de alguns dos organismos existentes no subsistema. Se a iniciativa passar duvido que volte a existir uma Secretaria de Estado do Ensino Superior. Mas também porque o texto ficou também a integrar algumas formulações indesejáveis em termos laborais, repescando normas que permitem contratações precárias desde que suportadas por receitas próprias, sendo que este aspecto que parece estar a passar despercebido às próprias associações sindicais.
No que segue analisarei a origem de algumas soluções do actual RJIES, na linha do que já havia sido feito por mim aqui no Jornal Tornado, no artigo, publicado em 25 de Janeiro de 2013, Da Reforma Veiga Simão ao RJIES, e, antes disso, no artigo publicado em 10 de Fevereiro de 2021, O Governo das Universidades e o RJIES, e anotarei brevemente as alterações propostas pelo governo agora demitido / candidato à recondução.
Ordenamento
Em matéria de ordenamento Mariano Gago fez do RJIES uma fortaleza do chamado sistema binário, procurando diferenciar universidades e politécnicos, e prevenindo o risco do chamado academic drift por parte destes últimos, mesmo que fosse necessário criar elementos de diferenciação artificiais, como a concessão do título (“profissional”, não “académico”) de especialista pelos Politécnicos, o que aliás levou a complicações com as Ordens Profissionais, e a redenominação dos conselhos científicos dos Politécnicos como “técnico-científicos”. Também procurou delimitar e condicionar a investigação científica feita nos Politécnicos(iii).
Pessoalmente, defendo, e não de hoje, que as Universidades também deveriam poder atribuir títulos profissionais de especialista, e que estes deveriam ser sujeitos a revalidação.
Do mesmo modo, embora sem reverter as situações já existentes, procurou impedir que as Universidades viessem, por fusão, a integrar unidades do subsistema politécnico, como António Nóvoa tinha pretendido ao propor a fusão da Universidade de Lisboa, do Instituto Politécnico de Lisboa e da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa.
Embora mantendo a referência ao sistema binário, a proposta de lei do actual Ministro, oriundo de uma Universidade que, recordemos, engloba os dois subsistemas
- prevê expressamente que as universidades possam incluir escolas politécnicas;
- admite que possam existir três tipos de instituições de educação superior: institutos politécnicos, universidades politécnicas e universidades, sendo que os institutos politécnicos poderão ser convertidos em universidades politécnicas e as universidades politécnicas em universidades.
Certamente em perspectiva uma futura “corrida às promoções”.
Mantém-se a possibilidade de atribuição do título de especialista mas se bem percebo a nova configuração prevista no texto estes terão acesso ao exercício de funções docentes através de convite(iv).
Garantia de qualidade
Em 2006 Mariano Gago, Ministro da Ciência e do Ensino Superior publicou legislação sobre graus académicos que incorporava as preocupações do Processo de Bolonha e que a generalidade das instituições se preocupou – contra o que esperava, gostava de dizer – em adaptar os seus planos de estudos logo nas primeiras semanas. No ano seguinte, paralelamente à aprovação do RJIES consegue a criação da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, conhecida por A3ES que funcionará nestes quinze anos como verdadeiro órgão regulador em relação às formações das instituições do ensino superior e às qualificações dos seus corpos docentes, com uma estabilidade derivada de Alberto Amaral ter sido durante muito tempo o seu líder incontestado e de a actual liderança também ter sido recrutada no meio.
A A3ES tem sido, pelo que me é dado perceber, respeitada, ou, pelo menos, temida. Os reguladores modernos, que em vez de aplicarem aos regulados normas pre-existentes acabam por ser eles próprios a criá-las enervam os destinatários, mas também os políticos. António Costa pôs abertamente em causa a moda da regulação, e em particular a ANACOM, mesmo quando presidida por um correligionário da sua geração. Montenegro quando andou pelo país a prometer cursos de Medicina, que foram recusados pela A3ES viu-se também posto em causa.
Recentemente o regulador recusou a acreditação de cinco instituições de ensino superior privado já com largo tempo de funcionamento, incluindo o Instituto Miguel Torga, o qual, dinamizado como Instituto Superior de Serviço Social por Bissaia Barreto, nasceu no âmbito do sector público, teve como entidade titular a Junta da Província da Beira Litoral e mais tarde a Assembleia Distrital de Coimbra e foi durante largo tempo apoiado por docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, estando a ser muito vocal na contestação ao encerramento.
A APESP – Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado, associação empresarial e também patronal, veio formalizar através do seu Conselho Consultivo, presidido por Pedro Lourtie, ex-Secretário de Estado do Ensino Superior em governo socialista, uma proposta que vi logo vertida na proposta de lei assinada por Montenegro e Fernando Alexandre, segundo a qual a avaliação com vista aos processos de acreditação poderia também ser realizada
Por agências de acreditação nacionais de Estados-Membros da União Europeia, que desenvolvam atividade de avaliação dentro dos princípios adotados pelo sistema europeu de garantia de qualidade do ensino superior.
Conheci Pedro Lourtie no processo de formação do Sindicato Nacional do Ensino Superior e respeito as suas décadas de experiência nas questões do ensino superior. No entanto este shopping de acreditações em que uma recusa da A3ES pode ser ultrapassada por recurso à agência da Croácia (à da Lituânia, à do Chipre), inspira-me alguma perplexidade. Bem basta que se tenham manipulado as conclusões de uma missão da OCDE que nos visitou quando o RJIES estava em preparação.
Governo das instituições
Supressão da paridade entre docentes e estudantes
A supressão, pelo RJIES, da representação paritária de docentes e estudantes nos órgãos de gestão do ensino superior decorrente do regime promovido por Sottomayor Cardia(v) poderá ser vista como uma evolução natural, ainda que seja curioso que tenha sido um dos expoentes do movimento associativo estudantil na sua época a liquidar a influência estudantil no governo das Universidades.
Em todo o caso, na altura circulava que entre os professores de Coimbra se defendia o fim da paridade, uma vez que na respectiva academia os representantes estudantis votavam em bloco, designadamente quando havia orientações aprovadas em Assembleia Magna.
Entretanto a transferência do poder para órgãos tipo Conselho Geral, com um número de lugares reduzido e em que os inicialmente eleitos cooptavam os elementos externos que passavam a existir tem criado uma percepção de restrição do funcionamento mais democrático anteriormente existente.
As alterações incluídas na proposta de lei de revisão não alteram significativamente o peso dos diversos corpos, sendo de chamar a atenção para:
- a inesperada inclusão de uma representação de antigos alunos que não tenham ligações com as instituições(vi);
- a não atribuição de direitos eleitorais aos docentes e investigadores que não integrem as carreiras, o que na minha leitura já decorria do actual texto do RJIES, ficando assim com menos direitos que os funcionários não-docentes.
O Führerprinzip ou, mais moderadamente, a supressão da colegialidade
No RJIES triunfou a atribuição de extensos poderes, inclusive o de fazer regulamentos, a reitores / presidentes de instituições e directores de unidades orgânicas quando a legislação que se consolidara logo após a Revolução de Abril criara uma uma pluralidade de órgãos, em regra de natureza e com falecimento colegais.
Não se tratou exclusivamente de uma reforma que tenha saído, como se de uma Minerva se tratasse, da cabeça de Mariano Gago mas da consagração de um movimento que a partir da atribuição às instituições de ensino superior de autonomia estatutária, levou a consagrar nos estatutos de um certo número de escolas, designadamente da área de engenharia, a existência de um presidente geral, secundado por vice-presidentes que presidiam respectivamente aos conselhos directivo, científico e pedagógico.
Não quer isto dizer que Mariano Gago quisesse subalternizar deliberadamente os conselhos científicos, em relação aos quais para contrariar modelos de funcionamento pouco ambiciosos baseados no You’ll Scratch My Back, I’ll Scratch Yours pretendeu instituir uma representação proporcional sem ter conseguido fazer passar essa “revolução” no Parlamento, o qual preferiu remeter a definição da organização dos conselhos científicos para os estatutos das instituições.
Já tive ocasião de escrever que este reforço do peso dos reitores e presidentes se fez em prejuízo das garantias dadas na revisão dos Estatutos de Carreira Docente, as quais previam a intervenção dos órgãos científicos. A esmagadora maioria das propostas de regulamento de avaliação de desempenho não previam à partida tal intervenção, e o IST nunca a quis consagrar… a avaliação pertencia aos catedráticos…
Eleição ou selecção dos Reitores e Presidentes?
O RJIES de Mariano Gago poderia conduzir a uma selecção de candidatos à liderança máxima das instituições que não se distinguisse assinalavelmente de um concurso. Todavia a memória da escolha dos líderes por eleição tem sido persistente e a apresentação de candidaturas “individuais” tem sido, creio, vista como um mero elemento folclórico.
A solução da proposta de lei não deixa de ser um compromisso: o processo de escolha abre como processo de eleição, a intervenção do Conselho Geral sobre as candidaturas apresentadas é qualificada como “selecção”, e só se o Conselho encontrar dois candidatos selecionáveis, se passa a uma eleição por eleitores de vários corpos tendo cada voto expresso uma ponderação em função do corpo – solução que foi defendida logo que o RJIES de 2007 foi aprovado. Se o Conselho Geral apenas seleciona um candidato, passa-se à eleição deste pelo próprio Conselho. Mas este compromisso, sendo essencialmente benigno, não contribuirá para uma revitalização do princípio democrático.
- a abertura à criação de instituições em regime fundacional, que já o disse, deveriam ter sido liquidadas no ciclo de Passos Coelho, quando a retórica oficial favorecia – e bem – a liquidação das falsas fundações sem substracto;
- as disposições sobre ensino superior privado, em muitos aspectos reproduzem as dos diplomas de 1989 e 1994, pelo que os sindicalistas ignaros que “descobriram“ no RJIES uma “omissão legislativa” quanto ao regime do pessoal docente que teria nascido em 2007, mais não estavam a fazer que levar água ao moinho dos patrões das privadas.
Quanto à ligação entre o RJIES e a degradação das condições de trabalho é preciso perceber que tal degradação decorre sobretudo da liberalização do regime aplicável ao pessoal especialmente contratado ínsita na revisão de 2009 e 2010 do ECDU e do ECPDESP, que já era pressionada antes da revisão ilegalmente e alastrou depois da revisão. Os maus contratos expulsam os bons…
Notas
(i) A delegação do SNESup era constituída pelo Presidente da Direcção, Paulo Peixoto, pelo Vice-Presidente Joaquim Infante Barbosa, que sucedera durante o mandato a Eugénia Vasques, e por mim mesmo, também vice-presidente.
(ii) Também a parte do percurso académico feita no ISEL suscitava comentários a colegas professores desse Instituto.
(iii) Embora em sede de Estatuto de Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico não tenha ficado consagrada qualquer inibição.
(iv) O que, julgo, aponta para impedir o futuro acesso de especialistas sem grau de doutor a posições de carreira.
(v) Que não foi aplicado às Universidades Novas quando estas saíram do regime de instalação.
(vi) Uma breve vista de olhos pelo articulado faz-me crer que me seria dado direito de voto na Universidade de Lisboa, uma vez que me licenciei na Universidade Técnica, e no ISCTE-IUL, onde fiz mestrado e doutoramento e que, se a proposta de lei fosse aprovada, passaria automaticamente a Universidade.