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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

Rosa Luxemburgo – Parte II

Primórdios das revoluções socialistas
No centenário da morte da revolucionária polonesa, filme da cineasta alemã Margarethe Von Trotta ajuda a comprender suas posições e embates.

Para dar conta da complexidade da agitada vida de Luxemburgo, que na infância achava “a leitura melhor do que batatas”, von Trotta compõe sua narrtativa com nove subtramas e fios dramáticos:

  1. Participação no movimento socialista polonês e alemão;
  2. Suas sucessivas prisões na Polônia e na Alemanha;
  3. Relações amorosas com Jogiches e Kostja;
  4. Infância em Varsóvia;
  5. Férias com Clara e Luise no campo e em balneários;
  6. Reflexões de Rosa em caminhadas pela neve durante suas sucessivas prisões;
  7. Seus embates ideológicos com Bebel, Liebknecht e Jogiches;
  8. Elucidativas palestras para os proletários alemães.

São nas longas sequências da terceira parte da narrativa deste “Rosa Luxemburgo” que von Trotta trabalha com apenas o preto e branco. Em amplos planos abertos e de cima do telhado, ela enquadra Rosa vestida de preto em suas caminhadas pelas vielas cobertas pela branquissima neve entre os cinzentos prédios da penitenciária. O clima impõe o vazio, a desolação e a melancolia. A sensação é de abandono e solidão, tornando-se mais penoso do que ficar fechada numa estreita cela, tendo apenas a cama e a mesinha com cadeira. Embora em algumas situações, Rosa tenha conseguido espaço para guardar seus livros e escrever seus ensaios.

Bufalo vergado sob peso é metáfora do proletário

O mais assustador nestas sequências é que von Trotta se vale das sombras para projetar a angústia e o horror do ser punido pelo opressor que lhe nega a liberdade de se organizar e resistir. Enquanto Rosa e outras sentennciadas caminham suas negras sombras se movem através da branquíssima neve. É como se o von Trotta projetasse a imagem de uma alma penada em movimento. Ela se expande e se encolhe enquanto se move rapidamente. É o expressionismo alemão recuperado por von Trotta, sua legitima herdeira. Impressiona mais por transformar Rosa num personagem de filme de terror, a exemplo de “O Gabinete do Dr. Galigari” (1922), do cineasta alemão Robert Wierne (1873/1938).

São inquietantes as sequências com imagens em p&b dos soldados alemães a avançar pela praça com seus fuzis em direção aos proletários em suas barricadas numa praça em côres. O contraste se dá não só pela desigualdade das forças, mas também por unir passado e futuro. O sentido advém das teorias revolucionárias de Luxemburgo cujas táticas incluíam o confronto com os soldados do Kaiser Guilherme para adquirirem experiências. E muitas vezes não refletiam as correlações de forças reais para se tornarem o devido aprendizado, quando bastava uma boa passeata.

Como continuidade deste clima de horror, von Trotta usa a metáfora do bufálo vergado pela carga a se mover pela neve. E Rosa se compadece das dores do animal, que a olha em plena agonia. É como se tratasse da metáfora do proletário submetido a inimagináveis pesos. Mas deles não pudesse se livrar, devido à brutalidade do opressor burguês que exaure suas forças sem atentar para suas limitadas condições de ser humano. E não pode deixar de puxar a carroça devido à vigilância do carreiteiro, sob pena de ser chicoteado até desabar na neve e ser abandonado agonizando.

Sukova encarna a mulher Luxemburgo

Não bastasse a amplitude da estruturação dramática de sua narrativa, von Trotta se vale de rigor estético, enquadramentos precisos e atmosfera expressionista. São efeitos expeciais ressaltados pela eficiente e ágil montagem do filme. Uma lição de que o cinema pode mesclar ilusionismo e realismo para envolver o espectador com o estado psicológico da personagem na prisão. É uma aflição sem fim ver Luxemburgo trancafiada numa estreita cela onde recebe Jogiches e ainda assim mostrar-lhe que, embora esteja presa, seus contatos com seus liderados lá fora continuam. E quando ela é libertada, ele lhe diz que aquela fora sua nona prisão.

Mesmo diante das seguidas perseguições, o que emerge desta cinebiografia estruturada pela cineasta alemã como um triller político, eivado de suspense, é a incansável polemista e teórica da ação revolucionária Rosa Luxemburgo. Toda Alemanha se tornou seu campo de batalha, centrado na Berlim do início do século XX. Porém o espectador se vê diante das multiplas Rosas Luxemburgos encarnadas literalmente pela magistral intérprete alemã Barbara Sukowa (Prêmio de Melhor Atriz do Festival de Berlim de 1986, dividido com a brasileira Fernanda Torres/1965, por “ Eu Sei Que Vou te Amar”, de Arnaldo Jabor/1940).

Por meio de Sukowa (02/02/1950), que galvaniza todas as atenções, é impossível não conviver com Luxemburgo sem deixar-se levar pela veracidade com que a interpreta. Mas são as construções dramáticas da roteirista/diretora, Margarette von Trotta e sua segura direção dos atores, que dão veracidade à sua narrativa. A eles se pode adicionar os precisos enquadramentos, movimentos de câmera e o uso que ela faz dos documentários em preto-branco, que lhe permitem dar veracidade ao confronto entre o exército do Kaiser e seus embates com os proletários.

Von Trota não trata das polêmicas de Luxemburgo

Deste modo, para uma produção de 1986, agora em DVD, o filme permanece impecável e atual em sua contribuição. O que permite ao espectador aficcionado à arte cinematográfica avaliar as ações da revolucionária Rosa Luxemburgo em suas diversas lateralidades. E pode ser completada com a leitura de sua biografia escrita por sua compatriota Elibieta Ettinger. Neste instante de impasses político-econômicos entre os EUA e a China e da transição dos polos de influência do Ocidente para o Oriente é bom entender que cada momento histórico produz suas revoluções. E as classes em disputa encontrarão sua forma de sairem vencedoras.

Contudo, nesta cinebiografia de Rosa Luxemburgo, von Trotta não menciona suas polêmicas com os bolcheviques. Centra sua abordagem apenas em sua participação no SPD e no partido Comunista Alemão (KPD), organizado por ela, Liebknecht, Jogiches e Paul Levy, em 1918. Enquanto a professora polonesa, Elzbieta Ettinger, uma de suas biografas, radicada nos EUA, afirma que suas críticas eram àcidas e contundentes. Isto mostra o quanto suas teorias eram baseadas nas propostas defendidas nas assembleias, seminários, artigos e livros. E conflitavam com as do Partido Bolchevique. Essas divergências só ficaram claras após a Revolução Russa.

Luxemburgo fez criticas às ações de Lenin e Stalin

Embora tenha saudado a Revolução Riussa como uma vitória do proletariado fez criticas à sua condução por Lenin e Stalin (1878/1953). Era como se Rosa Luxemburgo avaliasse o Governo Bolchevique à luz de suas ideias para o proletariado alemão conquistar o poder via revolução socialista. Não deixou pedra sob pedra, a ponto de ser chamada de “Erege Marxista” que traiu a revolução proletária, como se pode ler a seguir:

Ponto por ponto, Luxemburgo discutiu as falhas do Governo Soviético: o confisco e distribuição de terras estava fadado a criar uma poderosa massa de novos proprietários, inimigos potenciais da Revolução; o direito à autodeterminação nacional e o direito à separação da Rússia favoreciam os sentimentos nacionalistas, assim minando a unificação do proletariado; a dissolução da Assembleia Constituinte privava as massas de uma instituição democrática fundamental; e a abolição do sufrágio universal, bem como a destruição das garantias democráticas mais importantes – a liberdade de imprensa e o direito de associação e reunião impediam o desenvolvimento de uma vida pública sadia.

Desta forma, Ettinger procura situar o momento histórico avaliado por Rosa Luxemburgo em 1917, quando os bolcheviques conquistaram o poder na Rússia.

A análise de Luxemburgo sobre a Revolução de Outubro, descartada por alguns como um delírio momentâneo e saudada por outros como profética, não é nem uma coisa nem outra. É um prosseguimento lógico de sua teoria, baseada no conceito de desenvolvimento da história rumo a uma sociedade mais avançada e mais democrática.

“Ela deu as boas-vindas à Revolução como sendo o evento mais significativo da I Guerra Mundial e afirmou que o partido de Lenin era “o único da Rússia a captar os verdadeiros interesses da revolução naquele primeiro período”. Mas considerou que o método de Lenin e Trotsky – a eliminação completa da democracia – era catastrófico”.

Faltou avaliação real da situação na Rússia

O grande erro de Luxemburgo foi desconsiderar as forças em confronto na Revolução Proletária de outubo de 1917. O império que veio abaixo, deixou o vazio a ser preenchido pelo Partido Bolchevique à luz da realidade da Rússia naquela década. Nobreza, burguesia, latifundiários e financistas se aliaram aos exércitos estrangeiros para combater a revolução. As implicações sócio-político-econômicas eram de uma dimensão que escapava a Luxemburgo. Os proletários levados às ruas pelo KPD não lhe permitiam avaliar a contento o que o Partido Bolchevique enfrentava em meio à I Guerra Mundial. Era de outra natureza e edificação.

O grande vácuo em suas teorias revolucionárias foi exatamente o que não deveria ter-lhe faltado.

  1. Como consolidar o poder proletário durante a Revolução Russa?;
  2. A I Guerra (1914/1918) travada entre a Tríplice Aliança (Império Russo, Reino Unido e França) e o Império Central (Alemanha e Austro-Hungria) deixou um vácuo de poder;
  3. A guerra civil no próprio Império Russo era uma ameaça;
  4. Havia urgência em acabar com a I Guerra através de amistício entre os inimigos;
  5. A fome que grassava na Rússia no período 1914/1918 atingia o campesinato e os proletários. O Partido Bolchevique soube se valer desses conflitos.

Era uma tarefa hérculea. Só a teoria, a vontade e o expontaneismo eram insuficientes. Tratava-se de excluir a guerra do território russo para consolidar o poder soviético. Daí o amistício da Russia Soviética com a Alemanha, a criação da União das Repúblicas Soviéticas e a coletivização do campo para acabar com a fome. Vê-se aflorar a combinação das políticas nacionais com a geopolítica fronteiriça. Assim, o proletariado russo consolidou o poder através do Partido Bolchevique, liderado por Lenin (1870/1924). Era, enfim, a estratégia de consolidação da revolução que escapava a Luxemburgo. Faltou-lhe pensar na questão do Poder.

Espectador fica chocado com as execuções

As sequências finais da quarta parte da narrativa são chocantes, pois mostram o papel exercido não pelo exército alemão, mas pelos paramilitares. Espécie de executadores dos planos de liquidação dos revolucionários socialistas, a mando da burguesia alemã e protegidos pelas forças de segurança e o poder judiciário, enfim o Estado. É uma das sequências mais aterrorizantes do cinema, pois von Trota a constrói quase em câmera lenta. O espectador fica na ânsia de ver o desfecho do que irá desvendar a súbita prisão do trio Luxemburgo, Jogiches, Liebknecht.

Tudo transcorre em espaços limitados do quarto de hotel, na calçada e na rua, numa caminhonete e, depois, num automóvel. São as frases trocadas por eles com seus executores que angustiam e levam ao horror. O silencio se impõe e depois o espectador irá lembrar-se do empurrão levado por Jogiches e a frase aflitiva de Rosa. Depois só as águas do rio a ondular e espelhar as luzes dos postes da rua. O choque é inevitável. A revolução, definitivamente, não é só o projeto de susbstituição de uma classe pela outra. Envolve o embate que só o revolucionário sabe travar.

Rosa Luxemburgo

(Die Geduld der Rosa Luxemburg)

Drama político, biografia.
Alemanha. 1986.
123 minutos.
Música: Nicolas Economou.
Fotografia: Franz Rath.
Roteiro/direção: Margarette von Trotta.
Elenco: Barabara Sukowa, Daniel Olbrychski, Otto Sander, Adelheid Arndt, Jügen Holtz

 


por Cloves Geraldo, Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários “TerraMãe”, “O Mestre do Cidadão” e “Paulão, lider popular”. Escreveu novelas infantis, “Os Grilos” e “Também os Galos não Cantam” | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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