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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

Roteiro histórico e cultural com pouco de viagem

portas-da-cidade

Num dia claro, quem chegue de avião a São Miguel, ido do continente, e já antes de aterrar no aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, consegue ter uma percepção clara do que o espera. Uma ilha verde, de muitas povoações costeiras, crivada de cones vulcânicos.

O viajante verá a Lagoa das Furnas, primeiro. Depois, a do Fogo, claramente a cratera de um vulcão, a mais recente da ilha. Um pouco para sudeste – na sua largura máxima, que não é aqui, a ilha tem cerca de 15,5 km – fica o ilhéu de Vila Franca do Campo, antigo vulcão semi-submerso, reserva natural e palco recente de provas internacionais do perigoso mergulho de falésia.

Um pedaço de história

O povoamento da Ilha de São Miguel iniciou-se em 1444, pela mão de Gonçalo Velho Cabral, cuja estátua se pode hoje ver em frente às portas da Cidade, em Ponta Delgada. A povoação, daí o seu nome, nasceu no extremo de um declive inclinado e alongado, hoje submerso, e fazia parte de um conjunto de núcleos piscatórios que então se estabeleceram nesta região Oeste da ilha.

Até 1522, Ponta Delgada, concelho desde 1499, disputou o lugar de principal povoação micaelense, com Vila Franca do Campo, que nesse ano ficou destruída por dois terramotos sucessivos, causadores de muitas centenas de mortos na ilha.

Ao contrário de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, que resistiu à ideia de um monarca estrangeiro, a cidade de Ponta Delgada, nos finais do século XVI, aclamou rapidamente Filipe II de Espanha como rei de Portugal. Por isso mesmo acabou invadida e pilhada pela tropa de António, prior do Crato. Arrepiando carreira até ao século XIX e às guerras liberais, em 1832, completou-se aqui, na cidade, a organização do exército que sob o comando de Pedro IV, então apenas intitulado duque de Bragança, desembarcaria em Arnosa de Pampelido, a norte do Porto, para combater as forças de Miguel, o irmão absolutista, e reclamar os direitos da filha Maria II ao trono.

Um berço cultural

Em Ponta Delgada, ou nas suas freguesias, nasceram Gaspar Frutuoso, Antero de Quental, Teófilo Braga, Hintze Ribeiro, Roberto Ivens, Natália Correia, Mota Amaral.

O padre Gaspar Frutuoso escreveu, no século XVI, Saudades da Terra, um detalhado roteiro geográfico, natural, histórico e até genealógico dos Açores. Uma obra cheia de referências também à Madeira, Canárias, Cabo Verde e outras regiões atlânticas.

Em 1842, Antero de Quental nasceu também na cidade, no seio de uma família aristocrática, religiosa e tradicionalista – influências que não deixarão de se fazer sentir na sua obra. Em Coimbra, protagonizaria a chamada Questão Coimbrã, do Bom Senso e do Bom Gosto contra Castilho e as letras oficiais.

Geração de 70

Teófilo Braga e Antero de Quental
Teófilo Braga e Antero de Quental

Surgiria como mentor da chamada Geração de 70, que também incluiu Eça, companheiro de estudos e de boémia que lhe chamou “Príncipe da Mocidade”. Inspirado por Alexandre Herculano, Quental escreveria sonetos. Depois, as Odes Modernas, de tom revolucionário.

Leitor de Hegel, iria aproximar-se das ideias socialistas, à la Proudhon. Fundaria mesmo o Partido Socialista Português, o primeiro desta corrente. Cada vez mais pessimista, são também os tempos do Ultimato britânico, do Mapa Cor-de-Rosa, Quental regressa a São Miguel. Suicida-se a 12 de Setembro de 1891, com dois tiros na boca, em Ponta Delgada, num dos bancos fronteiros à Igreja do Senhor Santo Cristo dos Milagres.

Ainda em Coimbra, Antero cruzou-se com outro açoriano, apenas um ano mais novo, e também de Ponta Delgada, com quem também polemizaria.  Era Teófilo Braga, autor de, entre outras obras, de uma Teoria da História da Literatura Portuguesa, publicada em 1872. Republicano e positivista, na linha de Comte, com o 5 de Outubro de 1910, Teófilo Braga torna-se o presidente do Governo Provisório republicano. Presidente da República, de facto, viria a sê-lo durante um breve período, em 1915, sucedendo a Manuel de Arriaga, outro açoriano. São conhecidas as fotografias de Teófilo Braga, de guarda-chuva, deslocando-se de eléctrico, para o trabalho de Presidente no palácio de Belém, numa postura associada à chamada ética republicana.

Monárquicos notáveis

Hintze Ribeiro
Hintze Ribeiro

Mas se Quental e Teófilo eram republicanos, Ponta Delgada também teve alguns dos seus como expoentes do campo monárquico, no final da Monarquia Constitucional. Nascido em 1849, Hintze Ribeiro, do partido Regenerador, foi por três vezes Presidente do Conselho, equivalente ao cargo de primeiro-ministro. E se Roberto Ivens não foi político, participou ao menos nas expedições de exploração africanas que a monarquia lançou em finais do século XIX, também para fazer reconhecer direitos portugueses à região que ia de Angola a Moçambique iria estar na origem do caso do Mapa Cor-de-Rosa.

Oficial da Marinha de Guerra, Ivens nasceu em Ponta Delgada em 1850, e era bisneto de Thomas Hickling, mercador de Boston e cônsul americano na cidade que viria a estar na origem da fundação do parque termal Terra Nostra, um dos mais procurados destinos turísticos da ilha. Por duas vezes, com Hermenegildo Capelo, mas também com Serpa Pinto, fez o levantamento científico e reconhecimento das bacias hidrográficas dos rios Zaire e Zambeze, andou pelas terras de Iaca, Benguela e Quelimane, entre outras. Em memórias dessas expedições e em co-autoria com Hermenegildo Capelo, deixou De Benguela às Terras de Iaca (1881) e a mais conhecida De Angola à Contracosta (1886) – duas obras de viagem, uma rica tradição literária portuguesa.

Dando um salto à democracia, antes de para a semana, se dar um salto à cidade, Mota Amaral e Natália Correia foram outras duas figuras destacadas da política e cultura nacionais. Nascido em 1943, Mota Amaral, advogado, foi fundador do PSD, presidente do Governo Regional dos Açores, de 1976 a 1995, e presidente da Assembleia da República, de 2002 a 2005. Antes do 25 de Abril de 1974, pertenceu à Ala Liberal, o grupo de deputados que o regime de Marcelo Caetano permitiu que integrasse a Assembleia Nacional, em sinal de abertura poítica. No  movimento integraram-se, entre outros, Sá Carneiro, Pinto leite, Magalhães Mota, Miller Guerra, Pinto Balsemão, João Fortes. Tornaram-se notados, os discursos de Mota Amaral sozinho na bancada, contra ultras do regime, como o almirante Tenreiro e outros.

O génio de Natália

E, no final, as senhoras. Nascida em 1923, na Fajã de Baixo, freguesia de Ponta Delgada, Natália Correia marcou durante décadas a vida cultural portuguesa. Poeta, deputada do PSD,  partido de que se afastaria, cultivou tertúlias famosas no Bar Botequim, em Lisboa, e em 1984 ainda se tornaria estrela televisiva com Mátria, documentário de intervenção social e feminista. Antes, em 1966, tinha sido condenada em tribunal por ter compilado a Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, um dos grandes escândalos literários de antes do 25 de Abril.

Polemista, a passagem desta açoriana, de Ponta Delgada, pelo Parlamento ficou marcada pelo cantiga de escárnio e maldizer que, a 3 de Abril de 1983, dedicou ao deputado João Morgado do CDS, depois de este ter argumentado em debate que o acto sexual servia para ter filhos.

Natália Correia
Natália Correia

“Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.”

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