Em abril de 2005 passei uma semana em Copenhaga. Cidade linda e plana, despertava à altura de um inverno rigoroso, acordando sorridente para uma primavera que chegava. Logo no dia em que aterrei, numa vista de olhos aos prospetos turísticos na receção do hotel, constatei que Roy Hargrove tocava no dia seguinte no Copenhagen Jazzaus. Talvez a mais icónica das salas de jazz nórdicas, a par com as de Estocolmo e Oslo, a sala dinamarquesa situa-se no centro da capital e, desde 1991, aproveita as viagens dos músicos de jazz entre os Estados Unidos e o Japão para uma breve residência, proporcionando desta forma “one night shows” de elevada qualidade.
No dia do concerto entrámos numa sala ampla mas acolhedora, com pequenas mesas de bar que enquadravam um palco reduzido, mas suficiente para os instrumentos nele dispostos. Como gosto de recordar, foi talvez o concerto de jazz em que estive mais perto dos músicos. As luzes apagaram-se e a banda entrou, liderada por um negro baixo mas entroncado, de pose magistral e com uns óculos escuros que adensavam o “look”. Hargrove. Atrás dele, oito ou nove jovens músicos, praticamente juvenis, irrequietos e impacientes, dirigiam-se para os seus instrumentos.
A banda começou a tocar e a primeira constatação foi que os músicos eram tudo menos juvenis. Tocavam um jazz intenso, elaborado, competente, desempenhando em pleno o seu papel de músicos de suporte do mestre. Por essa altura já Hargrove era um valor seguro na fusão entre o jazz e o hip-hop (Mamma’s Gun, com Erykah Badu, fora gravado em 2000 e Voodoo, o genial primeiro disco do rapper D’Angelo, no ano seguinte). Mas o que se destacava em Roy era a sua intensa serenidade, os prodigiosos improvisos apoiados num naipe de músicos de elevada craveira, que o libertavam para a vertente mais criativa da sua música.
Desfilavam os temas de “Hard Groove” e “Strenght”, os seus álbuns mais neo-soul que gravou com os The RH Factor, a sua banda de suporte. E foi maravilhoso ver aqueles jovens músicos empenhados nos temos e improvisos, numa deliciosa atmosfera “jam” a que não faltou um sublime momento, em que Roy se dirige ao balcão do bar e pede uma cerveja, ficando tal como nós a observar a excelente prestação da sua banda.
Vem este episódio a propósito da sua recente morte, a 2 de novembro em Nova Iorque, devida a complicações renais que o levaram a ter de fazer diálise durante mais de 14 anos. Uma perda para o jazz mas sobretudo para a sua vertente mestiça, de ligação a outras músicas, outros ritmos e outras culturas. Hargrove recebeu por duas vezes o Grammy, uma delas para o seu jazz latino de “Habana” (em 1998) e outra para o melhor disco de jazz instrumental (em 2002).
Roy Hargrove nasceu em Waco, no Texas. Foi uma descoberta de Wynton Marsalis, que em 1987 visitou a sua escola secundária e ficou maravilhado com o seu talento. Estudou na Berklee School of Music de Boston e em Nova Iorque, cidade esta onde se viria a radicar. Logo a partir dos 20 anos começou a tocar com grandes músicos de jazz, como Sonny Rollins, Jackie McLean, Jimmy Cobb, Oscar Peterson, Roy Haynes, Shirley Horn, Wynton Marsalis ou Steve Coleman. Fundou o grupo neo-soul The RH Factor e a Roy Hargrove Big Band, com que gravou 21 discos em nome próprio. Participou ainda em mais de 50 discos de outros artistas, como Sonny Rollins, Cedar Walton, Roy Haines, Natalie Cole, Marcus Miller, John Mayer, Erykah Badu, D’Angelo e Common, entre outros.
Uma pessoa reservada e tranquila na sua vida privada, Roy era um furacão criativo na sua música e na execução, deixando um legado de genialidade e inovação às gerações vindouras, como comentou Anita Baker no Twitter no dia da sua morte: Tonal, melódico, do bebop ao hip-hop. Com alma, brilhante, um jovem mestre…”.
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Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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