A RTP vangloriou-se com o facto de ter tido a oportunidade não só de captar em exclusivo a rendição do fugitivo mas também de o ter entrevistado antes desse acto e explorou ao máximo o acontecimento em vários telejornais dias antes da sua transmissão integral no programa “Sexta às Nove” da responsabilidade da jornalista Fátima Felgueiras.
Ciente da controvérsia que o caso poderia desencadear, a jornalista explicou exaustivamente no próprio programa e noutros meios de comunicação social como tudo aconteceu, o que merece elogio, uma vez que permite avaliar o caso em toda a sua extensão.
Os portugueses ficaram assim a saber que a RTP foi contactada pela advogada de Pedro Dias para acompanhar a entrega deste como forma de garantir a sua segurança, uma vez que havia o risco de ser morto durante a detenção “se se entregasse sozinho” e se a mesma se processasse sem previamente ter sido garantida a presença da televisão e junto das autoridades policiais que a detenção seria transmitida em directo pela RTP.
A jornalista explicou que aceitou o convite e o plano definido pela defesa de Pedro Dias, assumindo que a RTP “fazia parte” desse plano, tendo mesmo falado ao telefone com o responsável máximo da Polícia Judiciária que concordou com a presença da RTP, pedindo-lhe que não mencionasse a identidade dos guardas que iriam prender Pedro Dias. Sandra Felgueiras disse ao director da PJ que “a forma como tudo vai decorrer” é da responsabilidade da PJ e que a RTP não está ali “para levantar problemas”.
Na entrevista que concedeu à revista VIP, a jornalista reage às críticas de que foi alvo e defende a cobertura da detenção de Pedro Dias, afirmando: “Percebi naquele instante que podia estar na iminência de ter o furo do ano” e fala de “invejas”, defendendo que a RTP praticou “serviço público”.
Tentemos então uma análise das várias questões que se colocam:
Não é a primeira vez que uma televisão é chamada a cobrir detenções policiais. As próprias autoridades – GNR e a PSP – chamam as televisões em “operações” como apreensão de droga, contrabando, etc.. Todos nos lembramos dos chineses detidos em exclusivo para a TVI. E de políticos como Paulo Pedroso e José Sócrates, cujas detenções foram acompanhadas em exclusivo pela SIC. Dir-se-ia que as autoridades policiais, incluindo a ASAE e a Polícia Judiciária, distribuem a “benesse” dos exclusivos pelas televisões.
Também é habitual as televisões (e os media em geral) serem chamados a cobrir acontecimentos organizados e programados por entidades políticas e outras para cobrirem viagens, visitas, conferências de imprensa, cimeiras, etc. etc.
Há também outro tipo de iniciativas organizadas por entidades oficiais ou privadas em que apenas alguns joralistas são convidados, tais como pequenos almoços e almoços de trabalho (muito usados por políticos) e outras como os célebres cruzerios de Ricardo Salgado oferecidos a jornalistas de economia
Em todos estes casos, os promotores dos acontecimentos têm a iniciativa e os jornalistas acompanham ( ou não) como entendem. Parte das regras são definidas pelos promotores, tais como haver ou não perguntas, limites para a recolha de imagens e de sons, entre outras. Os jornalistas aceitam se quiserem mas as regras são dos organizadores. No campo do desporto, (sobretudo no futebol) as regras impostas pelos clubes têm dado origem a muitos conflitos com os jornalistas.
O que há então de novo na cobertura da detenção de Pedro Dias, pela RTP? Desde logo, há que separar a entrevista ao fugitivo, da cobertura da rendição propriamente dita. De facto, a entrevista é uma peça jornalística na qual os papéis estão bem definidos, independentemente de esta poder ou não servir de “promoção” de um determinado ponto de vista favorável ao entrevistado. Porém, isso acontece em todas as entrevistas, podendo também suceder o contrário, por exemplo, se o entrevistado cair em contradições.
Já sobre a cobertura da rendição de Pedro Dias surge a questão de saber qual o papel da RTP no desenrolar da trama. As palavras de Sandra Felgueiras à revista VIP dão a resposta. “A Dra. Mónica Quintela contactou-me cerca do meio-dia – foi uma chamado muito curta, diria que não teve mais de 15 segundos – e disse-me: “Preciso que venha ter comigo a Coimbra” – deu-me a localização – “vai ter um exclusivo com o Pedro Dias”.
“Preciso que venha ter comigo a Coimbra” (…) “vai ter um exclusivo com o Pedro Dias”. A jornalista continua, afirmando “Percebi naquele instante que podia estar na iminência de ter o furo do ano. Mas só tive essa certeza quando o vi e quando percebi que ia ter a hipótese de gravar uma entrevista única com Pedro Dias”.
As palavras da jornalista são pois esclarecedoras sobre o que a motivou em primeiro lugar a aceitar o convite da advogada: o “furo do ano”, velha ambição de qualquer jornalista, e dar primeiro (do que outra televisão) e dar em exclusivo. Ora, sendo legítimos numa televisão comercial, estes argumentos são redutores como critério de uma televisão pública.
De facto, é suposto que as decisões editoriais do serviço público de televisão obedeçam a critérios editoriais mais exigentes do que os praticados pelos meios privados, privilegiando o interesse público em detrimento do interesse do público. Pedro Dias é suspeito de crimes graves estando fugido à justiça e em conflito com a lei e a ordem, representando uma ameaça para os cidadãos. A transmissão directa da sua rendição foi, de facto, “um furo” sobretudo depois de uma fuga mediatizada à exaustão durante semanas. Foi um “bom “momento televisivo”, porém pobre em termos substantivos.
A cobertura da rendição serviu, como quase sempre acontece, para promoção dos interesses de quem a organizou, neste caso a defesa de Pedro Dias. E a escolha da RTP e de Sandra Felgueiras para o acontecimento é explicada por esta na citada entrevista à revista VIP: “A razão pela qual ela me contactou a mim, e ela frisou esta parte, de ser em mim que confiava, foi o reconhecimento e a confiança que ela tem pelo meu trabalho. A Dra. Mónica acreditou piamente que, comigo, ela estaria em segurança”. E Sandra Felgueiras acrescenta: “Ela precisava de contactar um jornalista seguro, confiável e rigoroso, capaz de transmitir a informação com total clareza e com absoluta lealdade àquilo que ficasse determinado que iria acontecer. Para ela, era fundamental que fosse alguém que não violasse o princípio do secretismo que ali estava imposto e a operação se desenrolasse como ela tinha definido”.
E temos assim que a RTP aceitou “o princípio do secretismo imposto” e o desenrolar da operação definido pela advogada.
É, porém, forçoso reconhecer que seria muito difícil a um qualquer media, sobretudo a uma televisão, recusar o convite que os advogados de Pedro Dias fizeram à RTP. Diria no entanto que o trabalho realizado por Sandra Felgueiras é melhor do que os argumentos que usou para explicar aos portugueses porque considera que filmar a rendição de Pedro Dias definida pela advogada deste e de acordo com as suas próprias regras é serviço público.
Sandra Felgueiras e o programa Sexta às Nove são excelentes exemplos de como se faz jornalismo de serviço público. Porém, neste caso, tivemos mais um programa de interesse do público do que um programa de interesse público. Podem ser coincidentes mas não se percebeu que o sejam.
Artigo publicado inicialmente no blog VAI E VEM