A novela do BREXIT era suposto ter terminado no dia 29 de Março de 2019 mas, como qualquer outra soap opera de sucesso, vai ter a sua continuação.
Para já mais algumas semanas, mas a avaliar pelos episódios anteriores pode bem registar uma qualquer mirabolante reviravolta e… quem sabe… talvez…
No meio do rocambolesco em que se transformou este episódio da saída do Reino Unido da UE, fomos sendo bombardeados com toda a sorte de opiniões e análises, umas melhor fundamentadas que outras claramente destinadas à voragem dos tempos e a uma vida efémera; entre as primeiras, pelo conteúdo e pela perspectiva de abordagem, destaque-se o recente livro de dois académicos da Universidade de Oxford (Danny Dorling e Sally Tomlinson) que, mal ou bem, estabelecem um paralelo entre o Brexit e o fim do Império Britânico e cujo título remete para uma homónima canção patriótica fortemente associada à marinha britânica.
Dizem, no seu «RULE BRITANNIA: BREXIT AND THE END OF EMPIRE», que o Brexit – o movimento britânico para sair da União Europeia – não pode ser entendido sem se perceber como acabou o Império Britânico e, mais claramente, como os britânicos reagiram a esse mesmo fim.
Não tendo conseguido digerir a perda de um enorme império, o Reino Unido foi aumentando a desigualdade económica desde o final dos anos 70, até um ponto em que a diferença entre ricos e pobres na Grã-Bretanha se situou entre as maiores no cenário europeu. Quando a Índia e a maioria das colónias na África conquistaram a sua liberdade, os ingleses ricos viram-se subitamente muito mais pobres e culparam os sindicatos e os socialistas na década de 1970; a partir do final dessa década, para tentar manter a sua posição e os seus benefícios apoiaram o programa do governo conservador de Margaret Thatcher que, na senda das correntes monetaristas e do liberalismo clássico, promoveu a desestatização da economia britânica e o corte nas transferências sociais aos mais pobres e desfavorecidos. Não satisfeitos com isso promoveram um nacionalismo de pompa e cerimónia, tão apreciada pelos seus avós imperiais, e sob formas diversas difamaram os imigrantes nos jornais que possuíam ou influenciavam.
Face a esta pressão alguma coisa tinha que ceder e, no final, foi a ligação com a UE – foi o Brexit. É verdade que esta era, em parte, a voz dos esquecidos ou até a reacção das massas revoltando-se contra as exigências dos seus senhores; mas entre os apoiantes do Brexit alguns houve que acreditaram na propaganda de que os problemas de saúde, de habitação e de educação eram provocados pelos imigrantes, e outros que realmente pensavam que o “seu” país estava a ser conquistado por imigrantes coloniais e da UE, por refugiados de outros lugares, ou mesmo pelo Islão. Mas muitos outros votaram a favor do Brexit por mera falta de perspectivas e tudo o que desejavam era apenas algo melhor do que o que tinham.
Os britânicos foram convenientemente distraídos do aumento da desigualdade e da consequente pobreza que cresceu em consequência de décadas de insinuações e depois por propaganda directa que sugeria abertamente que a imigração era a principal fonte da maioria de seus infortúnios; sem imigrantes, diziam, haveria bons empregos para todos. Foram sendo (des)informados, a princípio em sussurros, e depois através de manchetes nos tablóides, que sem os imigrantes os seus filhos poderiam entrar naquela boa escola, ou a que frequentam não seria assim tão ruim. Disseram-lhes até que, sem imigrantes, poderiam morar na casa dos seus sonhos, uma casa actualmente ocupada por aqueles que os ultrapassaram e assumiram o seu direito natural. Tudo isso foi sendo dito e escrito para distrair as pessoas de olharem para quem realmente se estava a tornar muito mais rico e que financiava um partido político para garantir que os já muito ricos pudessem acumular ainda mais no futuro.
O quadro anterior, apresentado pelos autores como uma lista dos mais generosos doadores aos partidos políticos, mostra bem a preponderância das doações dos mais ricos ao Partido Conservador, precisamente aquele que implementou ao longo das últimas décadas as políticas que aumentaram as desigualdades económicas e sociais e deram origem às enormes injustiças que continuam a atribuir à imigração e à UE.
Outra explicação levantada prende-se com o facto das raízes do sistema de educação britânico, mal-grado alguma recente tentativa de modernização, remontar ao século XIX e às ideias então vigentes sobre a raça e o sistema de classes; dizem mesmo que maioria das pessoas que votaram pela saída UE aprenderam o que sabem da História britânica nas décadas entre 1940 e 1960 e responsabilizam o sistema de educação britânico por ter ajudado a produzir uma elite homogeneizada e corrupta, normalmente descendente dos arquitectos do império, e que fazem com demasiada frequência reivindicações pelo excepcionalismo britânico, que se deverá ao modo como muitos britânicos entendem o passado do seu império, ao facto do futuro do seu país continuar rodeado de mitos e nostalgia e à forma como são vistos pelas suas ex-colónias e pelo resto do mundo.
Por não poder deixar de concordar com a importância do conhecimento dos factos históricos como parte integrante do método de análise dos acontecimentos recentes, trouxe aqui a referência a este trabalho de Danny Dorling e Sally Tomlinson, tanto mais que julgo que as suas conclusões podem ser extendidas à forma como o Reino Unido foi agindo no seio da UE, onde demasiadas vezes reivindicou (e viu atendido) um direito de excepção que não pode ter deixado de contribuir para a ideia que sempre pareceu mais interessado no esboroamento que no fortalecimento do projecto europeu.
Chamo ainda a atenção para o facto de uma exclusiva “culpabilização” da ideia imperial poder resultar numa avaliação redutora de muitas das razões que levaram ao desejo britânico de abandonar a UE, pois parece por demais evidente que o burocrata e pouco democrático modus operandi da nomenklatura de Bruxelas e a clara sobrevalorização do projecto alemão – particularmente evidente no modelo da moeda única e no alargamento da UE a leste – também contribuíram, e muito, para a situação.
Entre 12 de Abril, a próxima data anunciada para a concretização do Brexit, ou o mais tardar até 22 de Maio, vésperas duma eleições europeia onde a participação britânica deixou de fazer sentido, concretizar-se-á uma realidade que já devia ter começado a ser discutida por todos os intervenientes e que se poderá resumir assim: irá o Reino Unido sobreviver a esta sucessão de acontecimentos e à mais que evidente fragmentação entre as nacionalidades que o compõem? e irá a UE assumir a sua quota-parte de responsabilidades no processo e aproveitar o ensejo para repensar e reformular o seu modelo de governança, democratizando o seu funcionamento e reformulando a sua moeda?