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João de Sousa

Sexta-feira, Julho 26, 2024

Sabores e nostalgia

Cresci comendo torresmos, sarrabulhos e marmeladas… bolinhos, gelados e jingubas… hoje nem tenho tempo para descascar uma jinguba (amendoim) e nem posso comê-las em excesso; engorda!

Sentanda à porta da sua casa, exibia nos enrugados braços uma debotada tatuagem que se impunha contra o tempo, cabelos alvos , aparentava cerca de 80 anos. Suas mãos trémulas seguravam firmemente um gordo canudo de gelado.

Não sei bem quais eram os sabores mas meus olhos fixos na imagem iludiam a minha que atribuía aos sabores as cores… Rosa (morango), amarelo (baunilha), castanho (chocolate ) e tinha no canto uma tira verde que pensei em menta ou limão.

Chamou-me atenção a calma com que ela saboreava aquele doce momento. Não tinha pressa e parecia gostar, pois seu rosto denunciava nostalgia, saudades do tempo que não teve, e tudo passou perante seus olhos enquanto lutava para sobreviver… e sobreviveu… deixando para trás victorias e derrotas e hoje à porta da casa exibe o troféu: o enrugado corpo entregue ao tempo já não tem pressa, espera calmamente a hora da partida e enquanto espera comete um suicídio lento e prolongado com pequenos e prazerosos delitos (açucares ,álcool, tabaco, exposição ao sol), prazeres de que sempre fugiu na mocidade.

Não sei se é da minha idade ou as coisas mudaram mesmo, os desenhos animados já não têm tanta graça, troquei as gasosas por algo mais inebriante, o café altera-me e não fumo nem passivamente, a carne tem de ser branca e o leite light, inundada de rótulos e fast food, a nossa vida é marcada com precoces ejaculações de efémeros prazeres , olhos fixos no relógio, cronometrando cada instante.

Um simples gelado à porta da casa, pernas cruzadas olhando para nada; tinha tempo. Pensei em qual foi o dia em que degustei uma refeição sem a sensação de culpa, colesterol e discípulos…

Comer mesmo, não só com a intensão de alimentar o corpo, mastigar as 33 vezes recomendadas pelos conhecedores da digestão. Sentir a sinfonia poética dos Sabores, declamando a sensação de bem estar… não sei se me falta tacto ao paladar ou se ainda não aprendi a sentir, mas às vezes sinto-me criminosa por não entregar a alma a um acto tão sublime. De sentar-me a uma mesa e comer sem limitações e sem culpas enquanto beberrico uma taça de vinho perfumado… e às vezes tenho saudades do tempo de menina em que abria e devorava um pacote de biscoito sem ler a data de validade e nem os igredientes… chegava a fazêlo apenas quando o pacote já estivesse vazio, calmamente queria ler a marca de algo que sabia tão bem.

Cresci comendo torresmos, sarrabulhos e marmeladas… bolinhos, gelados e jingubas… hoje nem tenho tempo para descascar uma jinguba (amendoim) e nem posso comê-las em excesso; engorda!

Por motivos de saúde, tradições e doutrinas às vezes somos limitados e quando chega a proibição é que vem o gostinho da tentação nos impelindo para o delito.

A tatuagem dela era o desenho de uma âncora de um navio…

E ela lá estava, sentada à porta da casa, exibindo nos enrugados braços uma tatuagem de uma âncora. A âncora de um navio que atracou depois de ter conhecido os sete mares… seus olhos denunciavam saudades.

A autora escreve em PT Angola

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