A música popular quase sempre tem como inspiração a crônica da vida do povo – o trabalho, a diversão, o amor, o futebol, os sonhos etc. etc. etc. Poucas vezes o cronista tem a genialidade e a variedade do brasileiro que se despediu da vida há exatos 50 anos: Wilson Batista, que viveu entre 3 de julho de 1913 e 7 de julho de 1968.
Ligado ao samba desde criança, na cidade onde nasceu (Campos, RJ), fez músicas desde muito cedo. Tinha sete anos de idade quando sua família se mudou para o Rio de Janeiro, ambiente propício para o menino desenvolver seus dons – o de observador atento da vida a seu redor, que conseguia transformar o que via em samba em música refinada. Seu ponto de observação era privilegiado – foi operário (marceneiro, profissão que aprendeu no o Instituto de Artes e Ofícios.), eletricista e, logo depois, contrarregra num teatro do Rio.
Se este posto lhe mostrava a vida dura dos trabalhadores, o outro – em cabarés da Lapa e da Praça Tiradentes – permitia a ele afiar o instrumento para apontar, muitas vezes com fina ironia, tudo o que via a seu redor – as cenas da boemia, da malandragem, a dura vida dos marginais, muitos deles igualmente do samba – alguns lendários, como Sinhô, de quem foi parceiro e amigo.E Noel Rosa, que começou como desafeto na disputa mais célebre da música brasileira, e terminou como amigo e parceiro – anos depois, em 1956, os sambas daquele verdadeiro desafio foram gravados no LP Polêmica, por Roberto Paiva e Francisco Egídio. A disputa deixou alguns sambas célebres, de parte a parte. Entre eles Lenço no pescoço (Wilson Batista), Rapaz folgado ( Noel Rosa), Mocinho da Vila (WB), Feitiço da Vila (NR), entre outros que se tornaram clássicos.
Mas tem outros, muitos outros. Como O Bonde de São Januário (1940 – sucesso no carnaval de 1941), um grande exemplo de sua maestria malandra. Nasceu originalmente como o elogio do malandro e dizia em sua letra: “O bonde de São Januário / leva mais um sócio otário / só eu não vou trabalhar”.
A censura do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) caiu em cima e a letra virou, malandramente, no oposto, o elogio do trabalhador, e assim é cantada até hoje:
Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar
O Bonde São Januário
Leva mais um operário
Sou eu
Que vou trabalhar”. Não fica só na apologia do trabalhador, mas incorpora a rejeição do “malandro”:
“Antigamente
Eu não tinha juízo
Mas hoje
Eu penso melhor (…)
A boemia
Não dá camisa
A ninguém”.
Em outro samba histórico, Acertei no milhar (1940), em parceria com outro lendário sambista, Geraldo Pereira, igualmente grande cronista, que era motorista no serviço público no Rio de Janeiro.
A parceria é incisiva. Nela o sonho de muita gente pobre explode na narração daquele que poderia ter sido mesmo o resultado onírico de uma noite de ventura.
- Acertei no milhar
Ganhei 500 contos
Não vou mais trabalhar”. Sonha com o que pensa ser a felicidade da companheira, Etelvina:
“Você vai ser madame
Vai morar num grande hotel”. Vai aprender francês, a língua chique de então, vai para a Europa, “até Paris”, e comprar um avião para andar pela América do Sul; vai colocar os filhos num colégio interno, quer pagar a conta com o “Mané do armazém”, porque não quer “ficar devendo nada a ninguém”. Mas o sonho logo acaba:
“Etelvina me acordou
Foi um sonho, minha gente”
Em Mundo de Zinco, descreve – com romantismo – o dia a dia da favela:
Aquele mundo de zinco que é mangueira
Desperta com o apito do trem
Uma cabrocha, uma esteira
Um barracão de madeira
Qualquer malandro em mangueira tem”. Mangueira que “fica pertinho do céu”, canta ele. E proclama, com razão: “Mas deixo o nome na história
O samba foi minha glória.”
Em Preconceito, faz uma carinhosa mas dura e incisiva denúncia do racismo:
“Eu nasci num clima quente
Você diz a toda gente
Que eu sou moreno demais
Não maltrate o seu pretinho
Você vem de um palacete
Eu nasci num barracão
Sapo namorando a lua
Meu samba vai, diz a ela
Que o coração não tem cor.”
O samba Inimigo do Batente (1939) desmente qualquer ideia de adesão à “boa ordem” que O Bonde São Januário tenha deixado. Neste samba, a mulher do malando reclama:
Eu já não posso mais!
A minha vida não é brincadeira
Estou me desmilinguindo igual a sabão na mão da lavadeira”. E o malandro, nada… “Se lhe arranjo um trabalho
Ele vai de manhã, de tarde pede as contas
E eu já estou cansada de dar murro em faca de ponta”. Não aceita as desculpas esfarrapadas e fantasiosas do malandro:
“Ele disse pra mim que está esperando ser presidente
Tirar patente no sindicato dos inimigos do batente”.
Em Nega Luzia fala da mulher que, na favela, numa madrugada bebeu muito, “recebeu um Nero”, e ameaçou botar fogo em tudo. Dai…:
Lá vem a nega Luzia
No meio da cavalaria
Vai correr lista lá na vizinhança
Pra pagar mais uma fiança”.
Sambista que se dá o respeito não fica na tristeza, mesmo que seja pelos 50 anos da perda de um gênio desta envergadura. Junta o povo em volta de um violão, um tambor, uma garrafa de cangibrina (como Wilson Batista diria), e bota pra rodar. É o que vai acontecer neste sábado, dia 7, no Ó do Borogodó, onde, entre as 16h e 20h, a cantora paraense Railídia (foto), que vive em São Paulo, comanda a homenagem a este que já não está fisicamente entre nós, mas continua na música genial com que cantou a vida de sua gente. O título da roda de samba não pode ser mais apropriado: “50 anos sem Wilson Batista – Porque o sambista quando é grande demais não deve desaparecer”. Clique AQUI para mais informações sobre a homenagem a Wilson Batista.
Para ouvir
O bonde São Januário com Cyro Monteiro
Jorge Goulart canta Mundo de Zinco
A polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa – Jorge Veiga e Roberto Paiva
Orlando Silva canta Preconceito
Caetano Veloso canta Lealdade
Cristina Buarque canta Ganha-se Pouco mas é Divertido
Dircinha Batista canta Inimigo do Batente
Cyro Monteiro canta Nega Luzia
Paulinho da Viola Canta Meu Mundo é Hoje
Texto em português do Brasil
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