As revelações em torno do chamado “negócio do sangue” alarmaram a opinião pública e provocaram reacções emotivas e indignadas de comentadores, focadas essencialmente nos aspectos simbólicos do produto em causa, isto é, o sangue humano, o nosso sangue. Não é para menos. Porém, para além da reportagem realizada pela TVI em 2015, as notícias dos últimos dias pouco ou nada adiantam ou esclarecem sobre as condições em que ocorreram factos criminosos.
De facto, as notícias falam sobretudo de diligências realizadas pela Polícia Judiciária – buscas medidas de coacção, etc., – desviando a atenção da questão central que consiste em saber como foi possível chegar até aqui sem que ninguém se alarmasse ou pelo menos sem que se soubesse que alguém denunciou irregularidades.
Aliás, passados anos sobre a reportagem da TVI, mesmo as notícias mais completas pouco mais fazem do que repetir a investigação então feita pela jornalista Alexandra Borges. Valham-nos, contudo, intervenções como as de Lobo Xavier ou Pacheco Pereira na última edição da Quadratura do Círculo para ouvirmos alguém reflectir e levantar pistas para um questionamento mais prfundo do fenómeno da corrupção em geral e destre caso em particular.
Entre a visão holística de Pacheco Pereira da existência de uma corrupção estrutural e generalizada na sociedade portuguesa, centrada essencialmente nos partidos e nas clientelas, que se espalha pela administração pública e se estende a empresas e a outras instituições, e a visão pragmática de Lobo Xavier de que a corrupção nasce e alimenta-se da “oportunidade” e da “probabilidade de não ser descoberta”, importa reconhecer que ambos tocam em aspectos cruciais para uma compreensão do fenómeno da corrupção.
No caso do sangue, não temos elementos que permitam seguir os trâmites dos concursos que atribuíram à Octapharma o monopólio da venda de plasma sanguíneo a hospitais públicos portugueses. Através dos dados disponibilizados não se percebe se os concursos ganhos pela Octopharma enfermam de ilegalidades e neste caso quem as praticou, se existem actas do júri dos diferentes concursos, quem nomeou os membros desses júris, se existem reclamações dos concorrentes preteridos ou desistentes por motivos alheios à sua vontade e, caso tenham existido, que respostas lhes foram dadas. Não será possível seguir documentalmente o circuito decisório dos diferentes concursos realizados?
A dimensão dos factos conhecidos não se compadece com a responsabilização de uma ou duas pessoas. Desde logo, um dos júris dado como tendo favorecido a Octapharma tinha um total de 13 membros. Porque se calaram? ou não viram motivos para falarem?
A questão neste como noutros casos envolvendo altos quadros da administração pública, mas não só nesta, parece ser a da incapacidade de auto-avaliação e de escrutínio externo destas instituições. E também a de uma cultura de servilismo e de medo de perder o emprego que grassa em funcionários de escalões intermédios.
Lê-se nesta peça que num dos concursos depois de já terem sido apresentadas as propostas, o júri terá acrescentado um critério de avaliação que objectivamente favoreceu a Octapharma: a experiência dos concorrentes no mercado português. Ora, se assim foi, onde estão os documentos oficiais, que justificaram a alteração? E ninguém reclamou? E porque razão já na reportagem de 2015, da TVI, os elementos ouvidos falam como se não pudessem ou quisessem dizer tudo? E porque é que ninguém reclamou quando os concursos foram suspensos e com isso se manteve o monopólio da Octaforma?
O que se conhece da investigação não permite grandes esperanças de uma acusação rápida, profunda, rigorosa e objectiva. Chegar ao alegado responsável principal, o médico Cunha Ribeiro, através das casas que a Octapharma lhe emprestou, cedeu, ou vendeu, parece pouca parra para tanta uva. E quando ouvimos que o advogado do responsável da Octapharma foi constituído arguido apenas para permitir uma busca à sua sociedade de advogados porque só assim essa busca seria legal, então as dúvidas sobre a capacidade das nossas autoridades judiciais chegarem a uma acusação estruturada e fundamentada são mais que muitas.
Uma coisa é certa. Desta vez as coisas não podem ficar em meias tintas, entre convicções, deduções e provérbios. Quem prevaricou deve ser acusado e punido. Quem acusar tem de apresentar provas sólidas e convincentes e quem julgar tem de nos convencer de que a justiça é cega mesmo tratando-se do nosso sangue.
Artigo publicado inicialmente no blog VAI E VEM