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Sábado, Dezembro 21, 2024

Santo António dos Capuchos

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Seis anos de Faculdade de medicina, três anos de treino intensivo no Banco de S. José. Seguia-se o Internato Geral, dois anos.

O meu grupo optou pelos Hospitais Civis onde tínhamos sido tão bem recebidos como alunos.

Agora já éramos médicos, embora nos fosse vedado o exercício não supervisionado. Essa rede dava-nos segurança e energia.

Tínhamos de rodar pela Maternidade Magalhães Coutinho, Obstetrícia , mas também Pediatria, por Santo António dos Capuchos, pelo Curry Cabral, aqui, dois serviços diferentes,Cirurgia e Infecto Contagiosas. Nem a minha primeira gravidez me deixou escapar ao contacto com meningites ou lepra, tuberculoses ou septicemias.

Adiante, não tinha tempo para ter medo, a barriga crescia-me e os meus conhecimentos também.

Santo António dos Capuchos foi um acontecimento. O nosso grupo tinha seis médicos e foram-nos distribuídas entre seis e oito camas da enfermaria de homens e da enfermaria de mulheres a cada um.

Estas enfermarias eram salas imensas com camas dispostas a toda a volta das quatro paredes com janelas altas e ainda mais camas alinhadas no centro da sala. Encontrei enfermarias idênticas no Hospital do Trissur Medical College (Kerala, Índia) há dez anos, quando fui visitar um amigo com fratura do colo do fémur.

Os doentes não tinham nenhum espaço de intimidade. Quem estava acamado tinha de usar bacios e mictórios na cama ou junto à cama.

Em compensação a conversa entre eles era mais ou menos esfuziante. As enfermeiras preveniram-nos logo de que não podíamos chegar cedo demais pois tinham de lavar os doentes e distribuir a medicação, ou tirar sangue e outros fluídos para análises e nós só iríamos perturbar a rotina.

Decidimos de acordo com o Diretor do Serviço aproveitar as horas matinais para passar a limpo as histórias clínicas colhidas de véspera e ler as papeletas dos doentes da nossa tira admitidos durante a noite, e que vinham transferidos do Hospital de S. José.

Depois dos doentes lavados e penteados, pois até o barbeiro vinha à enfermaria de homens, fazer barbas e cotar melenas, podíamos entrar, a bata comprida quase até aos pés, batas que já tinham centenas de barrelas nos tecidos puídos. Mas eram espessas e ajudavam a conter o frio.

Começava a ronda. Sentar ao lado da cama , nas cadeiras de ferro pintadas de branco, nas quais nem notávamos a utilitária pobreza.

A história da doença, os progressos, melhorias ou recaídas, o aparecimento de novos sintomas, verificar os resultados das análises e radiografias pedidas dias antes. Aprofundar aspetos afetivos e emocionais, entrar nas confidências, para as quais se baixava a voz e se espreitava se o vizinho da cama do lado não se ia aperceber dos subentendidos.

Muita dor escondida, muitas vidas tristes. Estados finais com prognóstico reservado a quem era preciso incutir ânimo sem nunca mentir.

O Professor chegava e ia passar visita às enfermarias. Parecia a procissão dos Passos, onde um ou dois de nós iria ser escolhido para rever a história de um determinado doente que o Diretor Clínico ou um dos assistentes considerava mais pertinente, característica ou difícil.

Os doentes, quer os homens quer as mulheres, ficavam orgulhosos de serem o alvo da atenção de uma corte de médicos, uns tão novinhos, outros autoridades reconhecidas.

Éramos muitas vezes enviados à Biblioteca dos Civis, para consultar bibliografia. Quando havia opiniões diferentes sobre aquele caso clínico, recolhíamos à grande sala de conferência e de café, reunidos como Cavaleiros da Távola Redonda da Patologia Clínica.

Por vezes a discussão ganhava foros de disputa e esgrimiam-se conhecimentos e argumentos em favor ou contra de um dado diagnóstico.

Em Santo António dos Capuchos havia alguns doentes de ambos os sexos, que eram as relíquias do serviço.

Não podiam ter alta porque não tinham casa nem dispunham de recursos para viverem sós. Os que ainda tinham família, esta não os queria. O Professor, que era muito severo na forma como administrava os diferentes aspetos do serviço, com estes doentes, mostrava o seu carinho. Impensável mandá-los embora. E eles sabiam. Alguns estavam lá há anos. De vez em quando o Diretor mandava vir a Drª Rita A, fisioterapeuta, uma mulher alta, elegante, ruiva, lindíssima, para estes doentes terem umas sessões de fisioterapia que justificasse a sua permanência tão prolongada no hospital.

Nós, os jovens médicos, éramos as esponjas que tudo absorviam. O melhor e o pior dos seres humanos de quem cuidávamos, eram admitidos na nossa crescente abertura à descoberta do que é um ser humano, que não pode ser reduzido a um número.

Ilustração: Gato da Mouraria, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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